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Missão mergulha para conhecer maior montanha da Europa ocidental, submersa em território português

07 set, 2024 • José Pedro Frazão


O monte Gorringe, situado a mais de 200 kms da Ponta de Sagres, vai ser percorrido numa expedição científica promovida pela Fundação Oceano Azul, o Oceanário de Lisboa, Instituto de Conservação da Natureza e pela Marinha portuguesa. Os promotores defendem que esta é uma expedição essencial para ter conhecimento sobre este tesouro natural, a pensar nos compromissos de proteção de 30% de áreas marinhas até 2030.

Arrancou este sábado uma expedição oceanográfica portuguesa, organizada pela Fundação Oceano Azul, Oceanário de Lisboa, Instituto de Conservação da Natureza e Marinha portuguesa, que vai estudar um dos tesouros do mar português. O monte submarino Gorringe é a maior montanha da Europa Ocidental, com 5000 metros de altura desde os fundos marinhos, submersa no Atlântico a mais de 200 quilómetros de Sagres, na Zona Económica Exclusiva (ZEE) de Portugal Continental.

É um monte que se estende em cordilheira por uma região equivalente ao Algarve, com dois picos que ficam apenas a cerca de 29 metros da superfície e que geram correntes que propiciam grande riqueza natural. Por isso é uma Área Marinha Protegida, pertencente também à Rede Natura 2000 da União Europeia.

Em entrevista à Renascença, o líder da expedição e administrador da Fundação Oceano Azul, Emanuel Gonçalves, explica que vai fazer a Expedição Oceano Azul Gorringe ao longo de três semanas de duração. 26 cientistas estarão a bordo do histórico navio Santa Maria Manuela, apoiado por dois veleiros, onde vão ser recolhidas amostras e imagens para a caracterização da biodiversidade e habitats marinhos da zona.

Quais são os objetivos da expedição Oceano Azul Gorringe?

O objetivo principal desta missão é dar suporte à atenção que a Fundação Oceano Azul entende ser necessária para a proteção do mar em Portugal. Esta expedição foca-se neste grande monte submarino que está fora da vista do cidadão comum, mas com enorme importância do ponto de vista biológico. A expedição pretende ajudar a gerir esta área do ponto de vista da conservação da natureza e também para que seja efetivamente protegida, trazendo um melhor conhecimento científico que ficará depois disponível para as entidades responsáveis poderem gerir melhor esta área.

O que é que sabemos ao certo sobre esta área neste momento?

Esta enorme montanha submersa é a maior montanha da Europa Ocidental. É maior que o Monte Branco e muitas vezes não nos apercebemos do que está debaixo de água. Destaca-se claramente de toda a envolvente, pois há um conjunto de vastas planícies abissais, a mais de 5000 m de profundidade, de onde depois se ergue esta enorme montanha até quase à superfície aos 25-30 metros. É uma espécie de Kilimanjaro ou de Monte Fuji subaquático, do qual, obviamente por estar debaixo de água, sabemos muito pouco.

Houve um conjunto de expedições anteriores feitas nesta área da Rede Natura 2000 e, por esse motivo, sabemos que existem algumas espécies e habitats de interesse para a proteção e conservação da natureza, mas sabe-se pouco relativamente à informação científica necessária para dar um suporte mais consolidado às medidas de gestão.

Há um grande objetivo internacional, da União Europeia e de Portugal, de proteger 30% do oceano até 2030. Para que este objetivo seja efetivado e para que o oceano possa estar efetivamente protegido com medidas ativas, temos que acelerar este conhecimento. Sabemos que há ali um enorme valor natural e há a expectativa de que esta expedição possa ajudar a consolidar esse conhecimento.

Vai tentar 'levantar' estes valores naturais com ferramentas diversas, como câmaras subaquáticas, mergulhadores que vão capturar amostras, veículos operados de forma remota e observadores que vão registar diferentes espécies, para que se possa fazer uma 'radiografia' global dos valores naturais ali presentes de forma a suportar essas medidas de gestão e de conservação.

É a mais alargada missão naquele território?

Tem havido esforços anteriores de missões pontuais. Esta talvez seja aquela que integra o maior número de investigadores e de ferramentas durante uma maior duração. Portanto, temos expectativas de poder vir a encontrar novidades num monte submarino muito importante do ponto de vista biogeográfico e da sua localização. Para termos uma ideia, este monte é do tamanho do Algarve, numa área vasta. Com esta enorme altura, as correntes batem nesse monte submarino e trazem muitos nutrientes à superfície.

É uma zona muito rica por causa disso e é também uma zona de passagem do que chamamos de 'megafauna' marinha, ou seja, grandes migradores marinhos como tubarões, baleias, golfinhos, espadartes ou atuns. Temos a expectativa de poder registar a ocorrência de muitas destas espécies que têm também estatutos de proteção. Como tal, será importante que as medidas de gestão permitam efetivamente proteger este ambiente espetacular do ponto de vista da sua localização e daquilo que são as espécies que aí migram, vivem e que dependem também destas áreas para poder completar os seus ciclos de vida, reproduzindo-se e alimentando-se.

Junto aos fundos marinhos, sabemos também que existem ambientes de interesse de grande riqueza como corais e esponjas. Os levantamentos biológicos que vão ser feitos, através de análises de ADN, vão permitir identificar as próprias espécies e complementar o catálogo dos valores naturais que ali existem.

Pretendemos ainda disponibilizar esse conhecimento imediatamente para a sociedade através de um documentário. Vamos ter equipas de vídeo a cobrir os diferentes aspetos da missão científica para depois mostrar as riquezas e os valores naturais que ali existem à sociedade. O que está debaixo de água pertence a todos nós, portugueses. Por outro lado, os cidadãos ficarão também mais sensibilizados para a necessidade da sua proteção e conservação.

Além da observação da megafauna e dos dos corais, haverá também observação de aves?

Sim, vamos ter uma equipa da Sociedade Portuguesa do Estudo das Aves numa das embarcações. A expedição vai ter como base o navio histórico Santa Maria Manuela, onde vão estar as equipas de mergulho e as que vão colocar câmaras também junto ao fundo marinho. Mas tem também mais duas embarcações, uma delas com um veículo operado remotamente ( ROV) por uma equipa da Universidade do Algarve.

Noutra embarcação, vão estar equipas de várias instituições que, por exemplo, vão lançar câmaras a flutuar no oceano e que atraem a megafauna para podermos depois registarmos a sua ocorrência nos diferentes locais de interesse. Vão estar também estes observadores a bordo para registar tudo a nível de aves, mamíferos, tartarugas e eventualmente peixes que apareçam e também alguns impactos humanos como lixo marinho.

O veículo remoto (ROV) deve atuar entre os 40 e os 200 metros, certo?

Sim. O mergulho científico permite operar até por volta dos 40 metros onde os mergulhadores vão dedicar uma atenção especial à recolha de organismos para o seu estudo e a sua quantificação. O ROV permite ir a profundidades maiores, onde o mergulho já não pode operar, completando essa informação através de imagens.

Existem espécies e habitats naquela zona que estejam em perigo pelas convenções atuais?

Dizer que as espécies têm estatuto de conservação não é necessariamente uma boa notícia. As populações dessas espécies estão com problemas que, muitas vezes, vão depois necessitar de medidas de proteção marinha. As áreas marinhas protegidas são a melhor ferramenta que temos para proteger o que ainda existe no oceano em estado saudável, e, por outro lado, para ajudar a recuperar as espécies em perigo.

Essas espécies não vivem isoladas. São predadoras de outras espécies e, portanto, é muito importante estas medidas permitam a integralidade do funcionamento dos sistemas marinhos. Por exemplo, muitos mamíferos marinhos estão ameaçados, apesar de já termos terminado alguns impactos como a caça à baleia. No entanto, as populações de muitas dessas baleias nalguns casos são apenas de 10% face ao que eram antes da caça se ter iniciado.

São recuperações que levam muito tempo, nomeadamente em animais que vivem muitos anos. Algumas aves marinhas têm também estatuto de conservação. Vários habitats estão nas diretivas comunitárias e, portanto, há uma responsabilidade dos Estados em garantir a sua proteção efetiva.

Mas além do objetivo de preservar 30% de áreas marinhas até 2030 há também uma meta a cumprir de 10% de áreas com proteção total.

São ambientes de proteção estrita de pelo menos 10% da área. Portugal, tal como vários outros países da União Europeia, está muito atrasado ainda nestes indicadores. Mas além das percentagens, o que é verdadeiramente importante é a qualidade dessa proteção.

A proteção total não existe só por questões conceptuais mas porque sabemos que é a forma mais efetiva dessa recuperação acontecer de forma mais rápida e duradoura. Estas redes de áreas marinhas protegidas vão depois relacionar-se umas com as outras e as populações de peixes conseguem assim recuperar, o que é também um grande benefício para a própria atividade extrativa, como a pesca. São soluções que permitem inverter as tendências atuais de perda e degradação que infelizmente ainda continuamos a observar.

A pesca é uma ameaça neste território?

Um dos nossos parceiros vai ajudar a fazer uma quantificação dos usos através das diferentes frotas pesqueiras. Sabemos que na nossa Zona Económica Exclusiva, e por via da Política Comum de Pescas, operam várias embarcações, muitas delas com aquilo que chamamos de palangres, que são linhas de muitos quilómetros de anzóis que capturam um conjunto de espécies de forma relativamente indiscriminada.

Estes palangres são muitas vezes dirigidos aos grandes predadores do oceano como os espadartes ou os atuns, mas acabam por capturar muitas espécies, incluindo algumas com importância para a conservação, como tubarões, tartarugas ou aves marinhas. São uma preocupação global e esta área não será exceção. Temos indicação, até por estudos anteriores, de que existe alguma utilização que vamos tentar quantificar para determinar os impactos que as medidas de proteção têm nesses mesmos usos para que haja medidas de compensação.

A pesca é uma das principais atividades com impacto nestes sistemas marinhos e é importante que as medidas de proteção consigam integrar os aspetos que vierem a ter impacto nessas próprias atividades. A expedição terá como objetivo avaliar aquilo que está a acontecer, mas hoje temos ferramentas a nível dos satélites que permitem fazer estes inventários de uma forma bastante mais precisa. Pretendemos também fazer esse estudo através dos nossos parceiros internacionais que depois ficará à disposição das autoridades para tomarem as medidas que entenderem necessárias relativamente à proteção desta zona.

A expedição que tem vários promotores, incluindo entidades da sociedade civil, mas também oficiais. Trata-se de um impulso decisivo para as missões a desenvolver na zona económica exclusiva portuguesa?

A Fundação tem procurado trazer os melhores padrões científicos que suportem medidas que não estão a funcionar neste momento. Se estivéssemos a fazer bem as coisas, não tínhamos estes indicadores de perda e o oceano não estava em perigo como está hoje. Temos que conseguir ativar as ferramentas que existem e que sabemos que funcionam, acelerando a sua implementação, estabelecendo parcerias e utilizando-as como estamos a fazer nesta expedição.

É um processo de plataforma aberta em que quem se quiser juntar é sempre bem-vindo. Desta forma conseguimos ter as melhores capacidades nacionais e internacionais à disposição para integrar esse conhecimento e colocá-lo imediatamente ao serviço da gestão. É preciso que os processos de gestão e decisão sejam qualificados, com a capacidade do próprio Estado responder de forma célere e, no fundo, juntar este ciclo virtuoso de entidades e de processos ao serviço dos grandes objetivos de conservação e de proteção.

O ponto de partida é que, neste momento, ainda não estamos a conseguir fazer estes processos de forma eficaz e rápida. Precisamos de trazer esta velocidade e esta qualidade em escala. E muitas vezes isso tem sido difícil no oceano. Quando olhamos para os indicadores, temos algumas áreas que funcionam bem a nível pontual e o grande desafio da meta 30/30 é a forma como vamos dar escala, velocidade e qualidade às medidas de conservação marinha.

Portanto o modelo deve ser o desta expedição?

Acreditamos que estas expedições são desencadeadores destes processos. A expedição integra toda a informação histórica existente e, com a nova informação recolhida, coloca-a num relatório científico à disposição dos decisores. Ao juntá-los logo à partida, os decisores já fazem parte do próprio processo de coresponsabilização dos investimentos realizados e dos seus efeitos. E também alerta a sociedade para a necessidade de apoiar estes processos, através de documentários e do envolvimento dos meios de comunicação social que são aqui muito importantes para ajudar a divulgar o nosso enorme património.

Portugal tem algum património em terra num território relativamente restrito, mas somos um gigante oceânico com o maior património natural da Europa. Através destas iniciativas, acreditamos que a Fundação Oceano Azul e o Oceanário de Lisboa podem fazer o seu papel, enquanto entidades da sociedade civil, de apoiar os processos que depois, obviamente, os governos têm a responsabilidade de fazer acontecer. Ao estabelecermos estas parcerias alargadas e trazermos o melhor conhecimento científico, acreditamos também que estamos a ajudar a acelerar e qualificar esses mesmos processos.

Isso quer dizer que este é um 'pontapé de saída' num processo que não poderá parar?

Acreditamos que através destas ferramentas podemos depois ganhar a tal escala e replicar estes processos. A proteção deste grande monte submarino não vai permitir a Portugal alcançar os 30% da meta definida. É preciso ainda replicar noutras áreas de interesse de proteção e colocar estas expedições ao serviço dos processos de decisão.

É necessário também que haja um plano para isso. Este plano para 2030 já vai tarde, pois já estamos quase no final de 2024 e, portanto, temos 5 anos para fazer estas áreas, não só no papel mas fazê-las acontecer na realidade. O plano é governamental mas acreditamos que conseguimos ajudar a qualificar esse processo e acelerá-lo. E tem havido uma parceria muito estreita com o Governo português para discutir estes assuntos e colocá-los na agenda governamental para que Portugal possa liderar esta agenda.

Se há país na União Europeia que tem interesse em conseguir capitalizar os seus valores naturais marinhos, esse país é Portugal, precisamente pelo património que tem e porque pode gerar-se toda uma economia à volta desse património que valorize capital natural e o transforme num valor para a própria sociedade. É algo que não estamos ainda a fazer e o primeiro passo é conhecer e proteger e, a partir daí, alcançar a sua valorização em áreas da bioeconomia que hoje já começam a estar claramente na agenda, como a biotecnologia azul, por exemplo.

Do ponto de vista científico, esta expedição tem onze parceiros nacionais e três parceiros internacionais. O que é que trazem a esta expedição?

Esta é uma plataforma aberta e acolhemos aqueles que queiram juntar-se a nós. Tentamos trazer as melhores ferramentas para o tipo de avaliação que está a ser feita. O apelo que fizemos às entidades científicas nacionais para se juntarem fez com que as equipas dessas instituições estejam presentes na expedição, trazendo o seu conhecimento e as suas mais-valias nas suas áreas de especialidade. Vão permitir que o relatório científico que vai ser produzido tenha as principais componentes das áreas da biologia e da ecologia refletidas nessas mesmas entidades.

Os parceiros internacionais trazem algumas capacidades que complementam aquilo que estas equipas podem fazer, nomeadamente, por exemplo, com as câmaras que são lançadas para o fundo marinho ou as que ficam a flutuar e que têm depois um isco que atrai os animais e que, dessa forma, permitem conhecer as espécies que existem junto a este monte submarino.

Estes especialistas da Austrália e dos Estados Unidos utilizam essas ferramentas em muitos locais diferentes e isso permite-nos complementar essa informação. Também temos a área da bioacústica marinha, que é muito importante, porque permite, sem visualizar os animais, saber quem está lá no fundo, porque muitos animais marinhos produzem sons que, quando são tratados e processados, permitem saber quais são as espécies que ocorrem.

As equipas nacionais têm muitas ferramentas, por exemplo ao nível do ADN, onde se recolhem amostras de água e de organismos para identificação para completar o inventário do património natural que esta expedição ajuda a consolidar e depois tornar imediatamente disponível para as tais medidas de gestão que precisamos de acelerar. O objetivo científico junta-se de imediato ao objetivo de divulgação, através de um documentário, mas também se junta ao objetivo de proteção, através do envolvimento das entidades públicas que fazem a gestão destas áreas e criam então as ferramentas para que elas possam ser efetivamente protegidas.

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