Tempo
|
Em Nome da Lei
O direito e as nossas vidas em debate. Um programa da jornalista Marina Pimentel para ouvir sábado às 12h.
A+ / A-
Arquivo
Violação deve ser crime público?

EM NOME DA LEI

Tornar a violação crime público é "devolver dignidade" à vítima e acabar com "impunidade do agressor"

02 jun, 2023 • Marina Pimentel


Portugal tem desrespeitado "de forma aberta, clara e ostensiva" a Convenção de Istambul, ao manter a classificação da violação sexual como crime semipúblico e dependente da queixa da vítima.

Portugal está a desrespeitar de forma flagrante a Convenção do Conselho da Europa sobre o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica. Em causa está o facto de a violação continuar a ser um crime semipúblico, cuja investigação depende da queixa da vítima.

No Em Nome da Lei deste sábado, Teresa Féria, juíza do Supremo Tribunal de Justiça, Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, e João Lázaro, presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), revelaram estar em sintonia quanto à necessidade de a violação sexual passar a ser constituída como crime público.

Para a juíza do Supremo Tribunal, o país, ao recusar rever a lei, tem violado a Convenção de Istambul "de forma aberta, clara e ostensiva". "Ostensiva, porque já foi chamado à atenção pelo Comité das Partes e pelo Comité GREVIO, que monitoriza a aplicação da Convenção."

Portugal "assinou e ratificou a Convenção sem qualquer espécie de reserva" - "o que poderia ter feito" -, pelo que Teresa Féria não vê quaisquer razões para que o país não aplique os compromissos da Convenção de Istambul "na sua totalidade".

No entanto, tudo indica que o Estado português continuará a desobedecer ao acordo, uma vez que o Parlamento já aprovou na generalidade um projeto de lei do PS que continua a considerar a violação como crime semipúblico.

Sob este enquadramento, o inquérito judicial só poderá ser iniciado a partir da denúncia da vítima e quando o Ministério Público entender que o interesse da vítima o justifica - exceção sobretudo aplicada no caso de abusos de menores.

A também presidente da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas (APMJ) salienta, contudo, que este argumento do PS "não é válido, de forma alguma".

"Não é válido em função do que dispõe, de uma forma clara e óbvia, o art. 55.º da Convenção de Istambul, que diz exatamente o contrário. Diz que o procedimento deve prosseguir independentemente da vontade e da iniciativa processual da sua vítima."

Logo, para Teresa Féria e a APMJ, não há dúvidas: a violação sexual deve ser um crime público, não só de forma a garantir a proteção da vítima, mas também a dar um sinal de fim da impunidade do agressor.

"É a única posição que entendemos que permite às vítimas, de alguma forma, ultrapassar aquele trauma a que foram sujeitas e voltar a reescrever a sua própria história, a reviver aqueles momentos - o que é obviamente doloroso, o que é obviamente traumatizante, mas é-o pela natureza do crime e não pela natureza do aparelho da justiça."

De acordo com a juíza conselheira, "é a forma e o processo de a vítima retomar a sua vida e ver o seu bom nome, dignidade, integridade pessoal e segurança efetivamente acautelados pelo Estado". "Porque é por isso que nós pagamos impostos".

"É fundamental passar uma mensagem de fim da impunidade"

Joana Mortágua, deputada bloquista, também reforça a importância de se qualificar a violação sexual como crime público, sob a perspetiva do mesmo "argumento sociocultural determinante": "É fundamental passar uma mensagem de fim da impunidade".

O Bloco de Esquerda é um dos quatro partidos políticos que apresentou um projeto de lei sobre uma nova classificação do crime sexual, perante uma atualidade em que "o violador confia mais na sociedade para preservar a sua impunidade do que propriamente as vítimas confiam na sociedade para se sentirem protegidas".

Para Joana Mortágua, este desequilíbrio tem que ver com "a estigmatização, com a vergonha, com tudo o que envolve uma vítima de violação". "Não é por acaso que há pouquíssimas denúncias de violação. É porque isto envolve um conjunto de preconceitos na sociedade, que têm que ver com o papel e a sexualização da mulher."

É precisamente sob esta perspetiva de receio do estigma que Teresa Féria sublinha que "o ónus ou o encargo de trazer prova ao processo não deve recair sobre a vítima, como recai atualmente".

"[A acusação] tem de ser do Ministério Público. Tem de ser o Estado a produzir toda a prova, designadamente favorecendo que a vítima possa fazer todos os exames médicos que sejam necessários, em condições de segurança e de respeito, e que essa prova dos exames médicos possa ser utilizada de uma forma fiável mais tarde."

Já o presidente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) também defende a "natureza pública" do crime de violação, mas salienta que é preciso olhar para os mecanismos já existentes de apoio à vítima - e para outros que se possam criar.

"O que chama a atenção é que possa haver mecanismos para além dos mecanismos que têm de ser utilizados, que, muitas vezes, não o são, por inércia, talvez, como a proteção de testemunhas."

Para João Lázaro, numa eventual alteração à lei, a justiça deve dar uma 'cláusula de escape', numa "ponderação dos interesses e da vontade da vítima", para que "lhe devolva algum poder e alguma voz". Nesse sentido, fala na possibilidade de um eventual pedido de suspensão provisória do processo - mecanismo esse contemplado nas propostas de Iniciativa Liberal e Chega sobre a matéria.

"Poder haver mecanismos, como a suspensão ou o arquivamento - que podem, de alguma forma, ser contrariados, se o Ministério Público entender que não protege o interessa da vítima".

Uma discussão para ouvir no Em Nome da Lei desta semana, transmitido aos sábados na Rádio Renascença e sempre disponível nas plataformas habituais de podcast.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.