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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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“Et par le pouvoir d’un mot”

26 abr, 2022 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Estamos a aprender que cada uma das nossas escolhas, se não é um passo na preservação da liberdade que aprendemos a desejar e a estimar, é um mergulho no vazio e uma promessa de destruição.

“Liberté”, liberdade, é a palavra que Paul Eluard escreveu sobre os cadernos, a carteira da escola, a neve, as páginas em branco e as lidas, as armas dos guerreiros e as coroas dos reis, a selva e o deserto, os ecos da infância, as maravilhas da noite, o pão branco diário, as festas de noivado, os ninhos, os panos azuis, as asas dos pássaros, o mar e a montanha, a chuva, os caminhos, as lâmpadas acesas e as apagadas, a fruta cortada ao meio, o espelho, a cama vazia, o cão, a porta, o fogo, o risco desaparecido.

E também a carne e a fronte dos amigos, a mão que se estende, o copo, as orelhas do cão terno e guloso, os lábios atentos, os refúgios destruídos, os faróis desmoronados, os muros, a ausência de desejo, a solidão nua, a morte, o regresso da saúde, o risco, a esperança sem memória: o poder de uma palavra, nos reflexos da lua no lago, no raiar do sol, nos campos, na aurora e nos barcos, na montanha demente, nas nuvens e na tempestade.

Ontem, com grande emoção, foi esta liberdade de Eluard que me legendou a consagração eleitoral de Macron: a quem entregamos as armas dos guerreiros e a quem coroamos reis, continua a fazer toda a diferença. Não foi um suspiro de alívio, embora fosse um bem o bem que me soube esta nova folga face às possibilidades de progresso do projeto europeu poder continuar a evoluir, ou a possibilidade mais real de a NATO merecer a atenção que a pérfida invasão de Putin à Ucrânia exige a cada um dos países membros e a todos os cidadãos da União Europeia.

De facto, foi o regresso de algum conforto interior, o desejo de cheirar a fruta cortada das banalidades felizes do dia a dia, a atração do mergulho na intimidade da cama ainda vazia, a vontade de ser o que somos e o que fazemos, estando juntos, a vida a acontecer numa grande festa de noivado.

E aquilo que é desejo, solidão nua e morte, regresso da saúde, risco e esperança, é o cruzar das nossas histórias, dentro e fora dos limites, cada vez mais ténues, dos países do Velho Continente, determinando o desenvolvimento das potencialidades da nossa existência e o lugar da paz. Estamos a aprender que cada uma das nossas escolhas, se não é um passo na preservação da liberdade que aprendemos a desejar e a estimar, é um mergulho no vazio e uma promessa de destruição.

Não podemos esquecer, nem os jovens podem ignorar, que a paz que fomos dando como certa, 77 anos de uma certa forma de inovação histórica, foi conquistada pela esperança de podermos ultrapassar uma desgraça sem par, milhões de mortos e de vidas aniquiladas, património milenar derrubado, almas e ruas de pavorosos escombros. Assim, a liberdade das nossas opções obriga-nos a escolher, necessariamente, entre muros e faróis, entre egoísmo e ou solidariedade, de praças cheias, a pulsar.

As heranças históricas e a realidades de futuro que uniram a multiplicidade dos eleitores franceses que deram a vitória a Macron não simplificam, ainda assim, a tarefa de compreender o avanço do nacionalismo gaulês, protecionista e fechado, que a extrema direita vendeu perigosamente bem.

Ora, esse projeto de isolamento mataria a França, pois, apesar da sua extensão geográfica, dos seus recursos e do peso da sua economia, ela existe essencialmente naquilo que projeta fora de si mesma. A França é a forma displicentemente habilidosa como continua a convencer os demais povos, e as suas elites, da sua superioridade cultural, da sua excelência intelectual, da qualidade da sua vida, da benesse reputacional dos seus pequenos desprezos, das vantagens do seu curto horário de trabalho, da indispensabilidade de um extenso funcionalismo público, da necessária supremacia da sua estética, da perpetuação amável e condescendente da sua muito estratificada sociedade, da qualidade substancial daquilo que nela não conseguimos quantificar, da vantagem da sua joie de vivre face à sua dificuldade em assimilar.

Mas existe, também, como algo que pertence a todos os seres humanos e que contribuiu decisivamente para a construção do ideal europeu, na aurora, nos barcos sobre o mar, nos suores e na chuva espessa, nas sementeiras e nas estradas, nas praças a transbordar, nas luzes, nas casas, nos sinos de cor e na sua verdade física, como um fogo benigno e um objeto familiar. Nascemos para a nomear, para recomeçar a vida, e a França significa essa liberdade, a necessidade que temos dela.

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