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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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Mais cinco questões para abril

29 mar, 2022 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Começaram as comemorações dos 50 anos do 25 de abril, um golpe de Estado pacífico que deitou ao chão uma ditadura beata, gasta e violenta, a partir do qual nos temos reconstruído como uma nação mais desenvolvida, aberta, moderna, instruída.

1. Mais cinco lustros de história

A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei

Com umas hesitações e umas falhas de protocolo incompreensíveis, começaram as comemorações dos 50 anos do 25 de abril, um golpe de Estado pacífico que deitou ao chão uma ditadura beata, gasta e violenta, a partir do qual nos temos reconstruído como uma nação mais desenvolvida, aberta, moderna, instruída. Ainda assim, o difícil contexto internacional, ao qual estamos mais indelevelmente ligados do que mostra a TV, não pode deixar de nos interrogar sobre quanto estimamos a liberdade e a democracia construídas sobre o esforço de uns jovens militares fartos de uma guerra colonial sem sentido, meios ou condições. Interroga-nos, também, sobre o futuro: que investimento estamos dispostos a despender por mais cinquenta anos de liberdade e quanto esforço daremos à responsabilidade que esta exige de cada um de nós, como cidadãos de um país comprometido com a defesa dos valores democráticos e com uma Europa – que oferece e pede – capaz de acolher uma mais motivada e (demograficamente) jovem concorrência?

2. E a guerra aqui tão perto

Depois de cinco semanas de guerra na Ucrânia e da destruição metódica do seu património – hospitais e maternidades, habitação, escolas e universidades, centros de lazer, museus e teatros, fábricas – habituámo-nos a ver Lviv como o bastião estratégico e psicológico da vitória do bem: a cidade que acolhe os deslocados, de onde nos fala a maioria dos repórteres e em cujas ruas os habitantes constroem barreiras para proteger os belíssimos monumentos. Lviv é uma réstia de normalidade que parece erguer-se para dar alento a combatentes, população e espectadores. É também em Lviv que desembarcou a imagem de Nossa Senhora de Fátima, antecipando a consagração da Rússia e da Ucrânia levada a cabo pelo Papa Francisco, um gesto que chama à fraternidade, de um lado, os ucranianos, crentes e fortemente catequizados, que lutam pela liberdade com a coragem e a constância da fé; do outro, os russos de uma sociedade vazia de valores construtivos, endurecidos pela perda do sentido ocidental de humanidade provocada por décadas de ateísmo soviético e, assim, capazes de crer em tudo, facilmente manipulados pelo nacionalismo ressentido de Putin. Neste quadro, parece ainda mais aventureiro o discurso raging bull de Biden, um católico comportando-se com um egoísmo nebuloso e taralhouco, a jogar à roleta russa para propaganda eleitoral. Um saldo perigoso de uma viagem que se anunciava como messiânica e depressa perdeu a magia, enquanto a China adia mostrar as suas escolhas:

Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
Dàquém e Dàlém Mar

3. O valor das instituições democráticas

Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei

A guerra na Europa, a união da União Europeia, o ressurgimento da NATO, a fragilidade da ONU e tudo o mais que nos ocupa, por estes dias, o coração e a mente, quase nos fizeram esquecer a “outra” guerra da saúde e acabaram a repescar, num loop contínuo de humorismo barato, o acumular surpreendente de gaffes políticas em torno das recentes eleições e da formação do novo governo. Alguns desses nonsenses são tão disparatados que merecem um grande respeito: numa democracia, em que a representação do povo é um valor crucial, só um populismo inconsciente descreve o comportamento do Presidente como uma birra.

4. E os professores

Depois de algum debate, António Costa resolveu a longa crise institucional do Ministério da Educação com a promoção de João Costa. É bem provável que a evidente escassez de professores para o ensino básico e secundário lhe retire parte do entusiasmo e, se conhece bem o terreno, como se diz, sabe que os docentes destes ciclos estão a atingir um nível de exaustão sem precedentes:

Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar

E como ministro, a imposição legislativa – saída a 6 de julho de 2021, que bela data, do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Educação – da putativa extinção dos programas e da adoção “entusiástica” das Aprendizagens Essenciais, pode ter custos bastante mais elevados se vier a constatar-se a sua inoperacionalidade. O desgaste da escola frente à pandemia, os sinais depressivos nos alunos e os atrasos no cumprimento dos mínimos pedagógicos lutam por se impor à privilegiada transição digital e, assim, o texto legislativo, redigido com pouco cuidado, lembra uma fuga para a frente e se não resolver a crónica insatisfação curricular, deixa o ministério sem direção.

5. E o futuro?

É com tristeza e preocupação que vemos como um estudo internacional veio mostrar algo que todos já suspeitávamos: apesar da qualidade e da constância do nosso Sistema Nacional de Saúde, a elevada esperança de vida não é acompanhada pela devida qualidade em envelhecimento saudável. Essa é uma das razões pelas quais as pessoas ativas olham para a reforma com grande preocupação: significa uma deprimente perda económica, degradação da rede de contactos e da atividade cognitiva, pobreza, imobilidade, doença, pois, se

A bucha é dura
Mais dura é a razão

Que a sustem

O recém criado governo, a par do desenvolvimento da rede de creches e de educação de infância que tem, aplaudidamente, em programa, deveria pensar seriamente na poupança de dinheiro, e de sofrimento, se tratasse eficazmente de reduzir a condenatória fragilização de uma tão grande faixa populacional. E em abril, a poesia é Zeca Afonso, e sim, atentos leitores, deixei de fora o calão, esperando-o desnecessário. Será?

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