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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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15 mar, 2022 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Em 2021, Portugal teve o quarto pior desempenho no Índice de Desigualdade de Género quanto à distribuição equitativa das tarefas no lar.

Embora nestes dias que vivemos como uma dolorosa experiência do tempo suspenso, da crua realidade de um conflito bélico insano e brutal, sem consciência nem qualquer assomo de civilidade, março - que já está cheio das flores precoces da outra guerra que temos em mãos - é o mês em que falamos um pouco mais das mulheres, esses 51% da humanidade cujos direitos humanos ainda não estão garantidos em nenhum país do mundo, essa condição de desigualdade persistente que requer políticas desenvoltas, precisas e fortes e, até, quotas.

Enquanto olho, atónita, para o mapa que inscreve a destruição maciça e metódica que a egolatria de Putin vai infligindo, sem tréguas nem moral, a um país soberano e livre, é Dia da Mulher, a data da mais amável ambivalência: e chegam-me as palavras de Annie Ernaux sobre a “carga mental” que todas as mulheres partilhamos, na história e no presente. Diz ela que, agora, o vivemos com um desconforto crescente e talvez seja obra do #Metoo. A consciência dessa carga de que fala a escritora também sofreu os seus abalos com a pandemia, uma situação crítica em que todos fomos catapultados para o limbo do risco psicológico, do isolamento, do stress, do excesso de trabalho executado em más condições. Ainda assim, nos lares com filhos menores, na maioria das famílias monoparentais, nas escolas e nos hospitais, o peso abateu-se sobretudo sobre as mulheres e, graças à sua extensão, ainda não estamos em condições de contabilizar os estragos. Mas sabemos que em 2021 Portugal teve o quarto pior desempenho no Índice de Desigualdade de Género quanto à distribuição equitativa das tarefas no lar.

Ernaux avisa que o hábito de encarregar a mulher de todo o trabalho material no casal e na família mudou muito pouco, mas também que percebe nas mulheres jovens uma alegria pelo projeto próprio, pelo pensamento, que é recente e novo nelas, e está a influenciar positivamente os seus companheiros. Vejo as imagens das mães e avós coragem que deixam para trás a sua Ucrânia natal, com as crianças ao colo, um mar de casacos azul e rosa, os pompons dos gorrinhos ao vento, e penso “oxalá”. Que terão elas para nos ensinar sobre a “carga mental” de uma situação limite, milhares de mulheres que abandonam as suas vidas, sozinhas, com tantas crianças para cuidar e, pavor de todos os pais, na maior das incertezas?

Mas este março também é de Ferrante, a misteriosa escritora italiana que trouxe à literatura retratos rejuvenescidos de uma feminilidade em busca de um lugar no mundo. Ferrante fala da sua voz interior de escritora e da descoberta, estranhíssima, de que esta se fez sentir sob a pressão de ser uma voz masculina - calibrada, tranquila, condescendente - que além disso era estimulada pelos professores, como promessa de escritor(a). Com o tempo, conta Ferrante, uma outra voz foi surgindo, surpreendentemente, cheia de insatisfação, impetuosa e por vezes insolente, mas que se mostrou como a de uma escritora de corpo inteiro e de cabeça inteira: são momentos maravilhosos, diz, sair do jogo e encontrar-se no seu próprio estilo. Ferrante, talvez pensando em todas as mulheres que realizaram o seu projeto, mas tiveram de desassimilar esses começos, e as suas aprovações, em modo masculino, descreve o culminar desse processo como a espera de uma nova e fulgurante ocasião que deve encontrar-nos mais preparadas, menos distraídas. Dia da Mulher, e dos homens que combatem com elas, para que as mulheres não se aconteçam distraídas.

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