Siga-nos no Whatsapp
Convidado
Opinião de Convidado
A+ / A-

Opinião

Pedroto foi maior que a própria vida

07 jan, 2025 • Alcino Pedrosa*


O investigador Alcino Pedrosa escreve uma crónica sobre a obra e o pensamento de José Maria Pedroto, que continua a ser atual e a colocar questões e desafios.

Quando me foi solicitado que elaborasse um texto evocativo de José Maria Pedroto não hesitei um momento. Devo sublinhar que me senti, mesmo, honrado. Nada é mais lisonjeiro que falar de alguém que respeitamos e cujo pensamento temos estudado nos últimos anos.

Como é costume nestas ocasiões procurei uma frase, uma ideia, uma memória, a partir da qual construísse o meu texto. E a primeira que veio à mente não é curiosamente a mais antiga (essa, remonta aos meus seis anos, comigo na baliza do topo norte do Estádio das Antas, a procurar suster um remate de Pedroto). A minha memória é mais recente, fixa-me no dia 10 do mês de setembro de 1977.

Nessa data jogava-se a segunda jornada do campeonato nacional de futebol. Assisti ao jogo que terminou com a vitória dos canarinhos por dois a zero. Na memória, registadas, de modo indelével, ficaram as palavras de José Maria Pedroto, proferidas, no final do jogo, a escassos cinco metros do sítio onde me encontrava: "Não voltaremos a perder um jogo assim". E se bem afirmou a ideia melhor a concretizou, pois aquela viria a ser a única derrota em todo o campeonato.

Já segue a Bola Branca no WhatsApp? É só clicar aqui

Três dias depois, na Alemanha, a equipa empatava a dois golos com o Colónia, na 1ª eliminatória da Taça das Taças. Começava a forjar-se, naquele momento, o F. C. Porto europeu, que teria a sua consagração, primeiro, em 1987, em Viena, com a vitória na Taça dos Campeões Europeus e, posteriormente, em 13 de janeiro de 1988, no estádio das Antas, com a conquista da Supertaça europeia.

Naquele momento, no final do jogo na Alemanha, percebi porque Pedroto era uma referência para adeptos como o meu pai, que lhe chamava “O Mestre”. Quando alguém com saber feito chama a outro “O Mestre”, é porque ele é alguém verdadeiramente especial.

Dois anos decorridos sobre o jogo no Estoril reencontrei o treinador portista. Numa conferência, na Universidade de Coimbra, que reuniu homens do desporto e onde se falou de história, política, poesia e, também, de futebol. Pedroto, instado a falar sobre o processo de construção das equipas, não foi tão direto como eu esperava. Recorreu à analogia, partindo do pressuposto que a construção é, antes de mais, um processo de criação.

Comparou o trabalho do treinador ao do escultor que desbasta a pedra, tornando uma massa informe na forma almejada. Onze jogadores por si só não fazem uma equipa – disse – como também uma rocha não faz uma obra acabada. É necessário um lento trabalho de desbaste que vai dando forma à massa informe. Quando o trabalho está concluído, tal como o escultor tem a noção que a obra existe por si, também o treinador está convicto de que a equipa pode seguir o seu processo de consolidação e crescimento.

Nessa altura, compreendi o significado das palavras de Pedroto, proferidas dois anos antes, na Amoreira. Apesar da derrota, a equipa já tinha uma relação orgânica com o treinador, para poder seguir o seu caminho.

Brian Clough, como Pedroto um espírito irreverente e insubmisso, e também ele um construtor de equipes, entendeu as qualidades do Mestre de um modo que não deixa lugar a qualquer dúvida: A man bigger than life. Com efeito, Pedroto foi maior que a própria vida. Não necessariamente porque a morte o ceifou prematuramente, mas porque o seu pensamento continua a ser atual, a colocar-nos questões e a desafiar-nos.

Homem controverso, por convicção e por opção – frequentemente afirmava não procurar a unanimidade, mas o reconhecimento dos que com ele trabalhavam – Pedroto foi um estratega notável, dotado de uma mente revolucionária, inovadora e meticulosa, mas suficientemente dúctil e ágil para adaptar as suas ideias às situações vividas, sem, todavia, abdicar dos valores que deram forma ao seu pensamento

Há treinadores – afirmou numa entrevista à BBC, em 1990, Brian Clough – que de treinadores só têm o nome e a carteira profissional. Outros, como o Sr. Pedroto, fazem e refazem equipas, constroem sistemas de jogo e estruturas que potenciam o crescimento dos jogadores.

Num mundo de atores iguais, como idealizava Kant em a “Paz Perpétua", Pedroto não teria lugar, porque ele era simplesmente diferente. Talvez Pedroto tivesse lido Kant (não sei), mas é um facto que ele baseava a sua estratégia na razão especulativa e na força da motivação. Pedroto começava a construir a estratégia de jogo colocando-se no lugar do adversário, nas ideias que este tinha sobre a equipa que o Mestre treinava e, desta forma, antecipava o desenvolvimento do prélio.

“O Homem”, como a ele se referia Vítor Baptista, sempre pensou diferente e provou-o durante a sua passagem pelo Vitória de Setúbal como treinador: utilizou a troca de bola, a conquista do espaço e a fluidez tática para transformar uma equipa mediana num legado que ainda hoje é recordado. Posteriormente, no Futebol Clube do Porto, o Mestre aprimorou os seus conceitos, desenvolvendo um modelo que antecipava o futebol moderno, como notou José Ricardo de León, o treinador que levou o Defensor a campeão uruguaio, destronando os crónicos vencedores – Nacional e Peñarol.

León, referindo-se ao modelo de jogo pedrotiano, escreveu: É um futebol elegante, onde a pressão, a valorização da posse de bola, o agrupamento de jogadores para criar linhas de passe e preencher os espaços, neutralizando o adversário, constituem a trave-mestra.

Quando era desafiado a falar sobre o processo de construção das equipas, José Maria Pedroto, recorrentemente, recordava o seu Mestre – Cândido de Oliveira. O treinador casapiano considerava este ato um processo de criação. Idêntico conceito tinha Pedroto, que focava no treinador, mais do que no diretor do departamento ou na estrutura dirigente (na época pouco ou nada se falava de empresários) este processo. Pedroto não abdicava deste princípio: Se sou eu – dizia – que vou trabalhar com eles, a primeira e a última palavra têm de ser minhas.

Na assunção deste pressuposto começaria a construir-se o sucesso desportivo que, para o treinador, resultava de quatro pilares essenciais, aos quais acrescentaria dois fatores de cimentação fundamentais: 1. ter uma ideia de jogo definida; 2 ser criterioso na contratação de jogadores; 3. ter capacidade de resistência frente à derrota; 4. existir uma liderança estratégica. Os fatores de cimentação eram os seguintes: fechar o balneário às pressões externas, e, sobretudo, a existência de uma direção capaz de concretizar uma política estrategicamente eficaz e focada em objetivos centrados no clube.

Chegado a este ponto e não querendo prolongar por demais o meu texto, atrevo-me a contar uma história, ilustrativa da dimensão e reconhecimento internacionais que José Maria Pedroto alcançou. Eric Hobsbawn, historiador marxista, um apaixonado pelo Arsenal e pelo futebol, num texto datado de 1975, afirmou a sua admiração pela seleção portuguesa que empatara com a Inglaterra, em Wembley, em 20 de novembro de 1974, e, particularmente, pelo seu treinador – a man with sun glasses (…) that showed the weaknesses of English football.

O autor de "A Era das Revoluções" referia-se a José Maria Pedroto e fazia-o de forma elogiosa, enaltecendo o trabalho do treinador na preparação do jogo, tarefa que, segundo ele, se aproximava muito do ofício do historiador pela pesquisa e utilização do método dedutivo-exploratório que certamente implicava.

O seu texto ia, no entanto, mais longe, ao justificar o conservadorismo do modelo de jogo inglês a partir do seu enraizamento na sociedade. Assunto que desenvolveria quase vinte anos mais tarde em "A invenção das tradições" (escrito em colaboração com Terence Ranger), mas que, na altura, resumiu de uma forma muito clara: O futebol como fenómeno de massas é quase uma religião leiga, identifica-se como uma entre muitas formas de expressão e símbolos de um imaginário coletivo; daí que os sistemas de jogo sejam, por vezes, difíceis de mudar, por irem contra o que os adeptos esperam deles, o que tem valido à Inglaterra muitos dissabores e derrotas em fases finais. O treinador português entendeu de forma muito aguda este nosso handicap.

Um par de anos mais tarde, num encontro mediado pelo jornalista Vítor Santos, confrontei José Maria Pedroto com a opinião que Hobsbawn expressara. Com alguma vaidade, o Mestre sorriu e confessou que preparara o jogo de Wembley analisando as crónicas de várias partidas realizadas pela Inglaterra em casa nos últimos 20 anos.

O futebol inglês era bastante previsível, pouco avesso a mudanças, perdendo consistência – dizia ele – se na primeira meia hora não se impusesse ao adversário. A solução passava pelo controle de jogo a meio do campo e ele confiava nos jogadores escalados para esta função. E, olhando fixamente para mim, rematou: Sabes, em Portugal, nunca ninguém se preocupou em fazer a História do Desporto e, no entanto, isso era tão importante. Até para os agentes desportivos, que assim ficariam com um melhor entendimento da evolução das modalidades e, estabelecendo nexos entre passado e presente, teriam certamente uma outra visão do futuro e outras ferramentas necessárias ao sucesso. Desafio-te a abraçares este empreendimento. Talvez, um dia, eu possa aprender com o que escreveres.

Talvez pareça imodesto ao recordar estas palavras. Não foi essa a minha intenção. Apenas quero sublinhar que o desafio que Pedroto fez continua presente.

* Investigador Integrado do instituto História, Territórios e Comunidades (NOVA-FCSH / CEF-UC)

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Luis Victorio
    13 jan, 2025 Barreiro 11:31
    Um fotógrafo da palavra, um pintor de ambientes. Como disse um dia, também o meu amigo é, um guardião de memórias. Feliz do Clube que teve e continua ter Mestres em diversas áreas. Parabéns amigo.