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Alfredo Teixeira
Opinião de Alfredo Teixeira
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Literatura, ou a voz dos outros

04 nov, 2024 • Alfredo Teixeira • Opinião de Alfredo Teixeira


A perspetiva do Papa Francisco cruza-se com a voz de outros intelectuais, que reclamam a necessidade de revalorização das humanidades nos processos educativos, como um lugar de aprofundamento do espírito democrático.

O período estival conheceu a publicação de uma Carta do Papa Francisco sobre o papel da literatura na formação. O documento foi habitado pelo desejo de pensar o contributo da literatura para a formação dos padres católicos. Mas o alcance da reflexão alargou os horizontes para o plano mais amplo da formação humana. O texto chegou sem alarido. Não mereceu o destaque de outros textos, que se apresentaram em linha com a agenda global. Mas é certo que um olhar rápido pelos media de referência, em diversos países, depressa descobre que o texto encontrou a empatia de muitas vozes, em diversos setores culturais.

Talvez seja importante recordar que os pronunciamentos autorizados da Igreja católica romana sobre literatura nem sempre foram recebidos como “boas notícias”. Tenha-se presente o famoso “Índice dos livros proibidos”, oficialmente abolido apenas em 1966. Nesse “índice”, encontravam-se reunidos autores como Stendhal, Hugo, Sand, Flaubert, Larousse, Gide, France ou Sartre. Como noutras circunstâncias, o Papa Francisco adota uma estratégia de inversão de perspetiva. Não se trata de traçar as fronteiras entre “boas ou más leituras”. Trata-se de trazer para o debate contemporâneo o papel educativo e formativo da literatura. A argumentação desta carta parte da evidência de que a literatura nos obriga a escutar a voz dos outros, descobrir o “outro” que há em nós, habitar mundos diversos, descentrando-nos e abrindo-nos à aventura da empatia. Essa é uma via de superação dos riscos de confinamento dos indivíduos na sua bolha obsessiva ou narcísica.

A perspetiva do Papa Francisco cruza-se com a voz de outros intelectuais, que reclamam a necessidade de revalorização das humanidades nos processos educativos, como um lugar de aprofundamento do espírito democrático. A filósofa Martha Nussbaum é uma das vozes mais proeminentes nesta defesa das humanidades em ordem ao desenvolvimento das competências que o debate democrático exige, substrato que favorece um olhar plural sobre o mundo, o respeito pela diferença, a demanda de identidades abertas, e o comprometimento na promoção dos valores que nos tornam mais humanos. Se seguirmos a intuição de uma outra voz, a de Jürgen Habermas (segundo a qual a construção dos consensos democráticos exige que se experimente ver o mundo a partir da perspetiva do outro), percebemos como a atual crise dos processos de construção das democracias precisa da leitura e da literatura.

No seguimento da polifonia de vozes que celebram a literatura, seria interessante propor também a descoberta das literaturas que atravessam a história religiosa da humanidade. As «escrituras sagradas», na história religiosa da humanidade, traduzem a memória de uma articulação entre o ver, o ler e o ouvir. Entre a estatuária egípcia, greco-romana ou mesopotâmica e a literatura védica, bíblica ou corânica existem, antes de mais, diferenças de perceção. Entre as pedras monumentais levantadas ao alto e os rolos da Torah, entre os hieróglifos e as parábolas de Jesus de Nazaré, entre as inscrições pictográficas e as criações caligráficas árabe-islâmicas há percursos civilizacionais. A figura seduz o olhar, impõe-se à comunicação sensorial. O texto exige o esforço da penetração, favorecendo a emergência de comunidades de sentido, grupos humanos que encontram na história da passagem da oralidade à textualidade a memória de um trabalho perscrutador dos grandes enigmas da existência humana. Em algumas tradições religiosas, a interdição da imagem está ao serviço da transcendência do divino – adiando o ver, dilata-se o tempo do contar, recitar, narrar. A história das expressões religiosas humanas está, assim, intimamente ligada à história da criação literária.

Falar de «escrituras sagradas» implica considerar que elas nascem de tradições orais anteriores. Mas essa oralidade não diz respeito apenas à arqueologia do texto, ela toca a sua atualização. Em muitas tradições religiosas, os textos sagrados são recitados, proclamados, cantados, adorados, ritualizados em cenários religiosos diversos, suscitando o sentido da escuta crente. Mas na medida em que determinada experiência crente se torna letra, narrativa, livro, ela ganha novas oportunidades de tradução e, tornando-se portátil, pode viajar para contextos diferentes daqueles que conheceram a sua génese. As «escrituras sagradas» permitem que determinada experiência religiosa se torne testamento, autorizando a constituição de tradições de leitura em torno de si e suscitando a sua apropriação literária, plástica, performativa, musical, entre outras, num continuado labor de transformação poética do mundo.

Qualquer que seja a posição (não)religiosa do leitor, as «escrituras sagradas» devem ser consideradas não só como lugar privilegiado de conhecimento das tradições religiosas escritas, mas também como património da humanidade. As «escrituras sagradas» são banda larga de cultura, na medida em exprimem a diversidade da aventura humana no terreno de muitas das suas interrogações mais decisivas. Ultrapassaram os limites das circunstâncias que lhes deram corpo, convocando, ainda hoje, alegrias e lágrimas. A sua história confunde-se com a das línguas, das linguagens e das literaturas (sapienciais, proféticas, místicas, apocalípticas, poéticas, etc.), exprimindo, não sem ambiguidades, modos humanos de habitar o mundo. A partilha desse património será um antídoto tanto para a praga da iliteracia religiosa reinante, como para os perigos da teocracia (quando a «escritura sagrada», como lei, invade politicamente todo o espaço social, torna-se arma de exclusão, em vez de tenda de acolhimento)

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