28 mai, 2024 • Alfredo Teixeira *
Numa recente passagem por um dos lugares da minha vida, no sudoeste alentejano, fui surpreendido por uma nova paisagem de odores. Nos arruamentos interiores de uma vila, por entre arquiteturas tradicionais – assim ficcionadas –, um cheiro intenso a caril invadia a via alentejana, tornando evidente a presença de uma comunidade de imigrantes. Era domingo e preparavam a sua refeição. Na sua cozinha, venciam a distância, ensaiavam uma pátria/mátria portátil de odores e sabores. Assim, o caril juntava-se, no horizonte alentejano, aos aromas do poejo, dos coentros, da erva-doce, da manjerona, também elas plantas de muitas migrações e diásporas.
Esta experiência foi contemporânea de um sobressalto na esfera pública: notícias de agressões a imigrantes, adultos e crianças. Tendencialmente, todos se mostraram chocados. A violência indiscriminada, baseada em estereótipos, é condenada pela opinião pública. Nos últimos dias, têm sido frequentes as considerações acerca do contributo das comunidades de imigrantes para a economia, a natalidade e o sistema contributivo. Também a evidência de que não há uma correlação entre presença de estrangeiros e o aumento da criminalidade. Obviamente, falamos de processos sociais muito complexos, só analisáveis quando cruzamos múltiplos fatores. Por isso, a sua simplificação permite manipulações diversas na arena política. Disso dá testemunho, por exemplo, o uso de números sobre o peso relativo de determinadas populações racializadas nos dispositivos prisionais, perdendo de vista todos os fatores sociais – incluindo os preconceitos judiciais – que contextualizam essa demografia.
Os estereótipos, neste contexto, são muito resistentes. Mesmo com o incremento dos discursos acerca dos benefícios da presença de populações imigrantes, os estudos mostram que uma parte muito significativa dos portugueses continua a ver os imigrantes como uma ameaça, sobretudo no que concerne ao emprego e à segurança. Nos contextos de construção da nossa cidadania, deveríamos dar mais atenção a esta pergunta: “de onde nos vem este persistente medo do estrangeiro?”. Tentamos resolver este problema apenas no plano de uma moral pessoal. Mas, de facto, os comportamentos xenófobos em geral, e racistas em particular, tendem a ter um carácter societal. O reforço da presença das humanidades e das ciências sociais no sistema educativo poderia ser um contributo válido para uma mudança de mentalidade. A filósofa americana Martha Nussbaum tem sublinhado esse papel das humanidades no desenvolvimento de uma “imaginação empática” – essa capacidade de se colocar no lugar do outro, que é uma condição para a construção de sociedades solidárias. A sociabilidade digital, como o mostrou Byung-Chul Han, pode ter agravado este contexto, na medida em que a acumulação de amigos e seguidores tende a multiplicar o que é idêntico e a distanciar o diferente.
Os diversos itinerários de pedagogia social não podem perder vista o impacto dos mecanismos de inclusão e exclusão na génese e constituição das sociedades humanas. Michel de Certeau alertou-nos para o facto de que as sociedades se constituem diferenciando-se. Assim, a formação de um grupo social é, de algum modo, uma máquina de “fazer estrangeiros”. Supõe-se um “fora”, para que exista um “dentro”; fronteiras, para que se desenhe uma nação interior; outros, para que um “nós” tome corpo. Na nossa história recente, vivemos a experiência de uma epidemia. Mas os efeitos epidémicos não são apenas sanitários. Quando, nas sociedades, se propaga o medo epidémico da perda de identidade, multiplicam-se as oportunidades de desencadeamento de processos do bode expiatório. A crise ameaçadora resolve-se na transferência da violência para uma vítima, acusada de ter introduzido esse “vírus” da dissolução.
A Europa tem uma longa história noturna de mobilização da exclusão como mecanismo de proteção. Numa obra já clássica, Storia Notturna, de Carlo Ginzburg, encontramos inúmeros testemunhos. No século XIV, a Europa foi gravemente afetada por ciclos alargados de crise, sempre acompanhados de vagas de endurecimento da violência contra grupos periféricos. Uma crónica de 1321 informa-nos que, por “toda a Cristandade”, os leprosos eram queimados – dizia-se, conspiravam para tomar o poder. Ao rumor de que as águas teriam sido envenenadas em vários lugares estratégicos, juntava-se a acusação de uma espécie de conluio entre os leprosos, os judeus e os reis muçulmanos. A estes juntavam-se frequentemente os doentes mentais, os mendigos, além de outras marginalidades. A estratégias de exclusão e perseguição passavam pela mobilização dos indicadores de perigo, pela designação da culpa, e pela desfiguração: os leprosos, para além de contagiosos, eram fétidos; os judeus cheiravam mal, contaminando os alimentos. No início do século XV, outros estereótipos de perseguição tomaram a dianteira: feiticeiros e magos, mulheres e homens, detentores de saberes proibidos. Sobre eles se dizia que honravam o diabo, abjuravam a fé em Cristo, profanavam a Cruz, praticavam magia, comiam crianças e faziam orgias. Esta encenação do medonho era a imagem de um mundo às avessas, a obsessão de uma sociedade que se crê cercada por um conluio perigoso. Nada de muito diferente dos atuais discursos acerca de conspirações globais.
Reconheço o valor da hipótese de René Girard – aquela que reconhece o impacto cultural do cristianismo, enquanto religião que transporta uma representação de Deus na ótica da vítima, contrastando com os mitos da violência fundadora (mesmo que instituições cristãs não tenham sido sempre coerentes com a imagem desse Deus das vítimas). Esta necessidade de uma mudança de ótica documenta-se, hoje, no facto de tantas vozes contra a exclusão social lançarem mão de um discurso sobre a mudança de mentalidade, a urgência de mudança de perspetiva sobre os “estranhos” ou “estrangeiros”, porque só assim podem passar do limbo da indiferença para o círculo da empatia. Precisamos, pois, de incrementar essa pedagogia social.
*Alfredo Teixeira, antropólogo