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Ana Sofia Carvalho
Opinião de Ana Sofia Carvalho
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Uma tragédia ética: como se escolhe quem vive e quem morre…

24 mar, 2020 • Opinião de Ana Sofia Carvalho


Estávamos longe de antecipar que a realidade iria ultrapassar a ficção. A decisão de estabelecer prioridades em casos de pandemia como a que hoje vivemos, baseada na possibilidade de sobrevivência é reforçada por várias teorias morais.

Todas as pessoas quando ensinam ética usam, principalmente nas primeiras aulas, de natureza mais teórica, o caso do comboio desgovernado, do navio em situação de naufrágio ou, mais recentemente, a programação de decisões éticas em carros autónomos. Basicamente, numa lógica de explicar a diferença entre uma decisão ética baseada nas consequências (consequencialismo) ou na moralidade da ação (deontológico) discutimos variadíssimos casos fictícios: (1) se desviamos o comboio desgovernado para matar uma só pessoa em vez de cinco, (2) como estabelecemos as prioridades num naufrágio quando só podemos levar alguns no barco salva-vidas ou (3) como programar um carro autónomo para decidir se a opção vai ser salvar o condutor ou outros e, mais difícil como escolher quem serão os outros a salvar.

Claro, estávamos longe de antecipar que a realidade iria ultrapassar a ficção e, que essa escolha faz parte do dia-a-dia de quem decide em países tão próximos como Itália e Espanha.

A decisão de estabelecer prioridades em casos de pandemia como a que hoje vivemos, baseada na possibilidade de sobrevivência é reforçada por várias teorias morais. O utilitarismo, por exemplo, argumenta que a moralidade é determinada pelas consequências das ações e, portanto, devemos garantir o bem máximo para o maior número de pessoas. A ação moral é aquela da qual resultam consequências boas ou desejáveis. O utilitarismo, que se concentra nas consequências de uma ação, normalmente aparece oposto a uma lógica deontológica, que afirma que a moralidade é determinada pelo próprio ato. Mas de facto, ao contrário dos nossos jogos educativos, onde é fácil explicar aos alunos a diferença ética entre uma escolha que privilegia as consequências (desviar o comboio para matar um em vez de cinco) ou a ética deontológica que avalia a eticidade da ação (matar é sempre errado) nesta situação específica, mesmo as correntes éticas tipicamente divergentes, provavelmente apontam para a mesma conclusão. De facto, na nossa opinião o ato moral obriga a que cada pessoa seja um fim em si mesmo por isso todos devem ter igual possibilidade de aceder a cuidados de saúde, no entanto, no caso atual, isso poderá ser simplesmente impossível. Uma abordagem neste sentido, tratar todos de forma igual é insuficiente quando simplesmente não há equipamento médico suficiente para tratar todos; se alguns terão acesso e outros não, então temos que enfrentar a questão de quem recebe tratamento preferencial. E assim, mesmo os personalistas e deontologistas mais obstinados acabam, neste cenário específico, por concordar que se utilizarmos um ventilador em pessoas com possibilidade de sobrevivência reduzida podemos, por um lado não evitar a sua morte e, por condenar à morte pessoas com possibilidade de sobreviver significativa.

As terríveis consequências de qualquer decisão tomada em circunstâncias tão extremas significam que esta nunca pode ser ética pois não pode ignorar o elemento trágico de quem sofre com esta ação ou de quem a tem que tomar. Deixar alguns morrer sem tratamento NUNCA é ético, mas, infelizmente poderá ser a opção menos má num cenário onde nos poderá estar vedado um curso de ação mais adequado.

Alternativas, como as defendidas numa abordagem igualitária, através de um sistema de lotaria ou do primeiro a chegar ou ainda numa lógica mais centrada na vulnerabilidade, através da priorização das pessoas os mais doentes, provavelmente resultará em mais mortes. Se investirmos recursos em doentes com menos hipóteses de sobrevivência, condenamos não apenas o doente que tentamos salvar, mas também o doente que não foi ventilado porque os recursos não chegavam para ele. Vidas que poderiam ter sido salvas serão perdidas…

As decisões éticas têm como pressuposto essencial a prudência. Esta, evidentemente, necessita de reflexão e tempo; tempo para refletir ou então, tempo que permita definir atempadamente a resposta. Qualquer plano desta natureza que não inclua uma reflexão ética terá, certamente, dificuldade de garantir a maximização da dignidade de quem é cuidado e de quem cuida.



*Ana Sofia Carvalho, Professora do Instituto de Bioética, da Universidade Católica Portuguesa

Comentários
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  • maria luz
    04 abr, 2020 lisboa 01:12
    Não há tragédia nenhuma! Ela já existia. Com a legalização da eutanásia e logo de seguida o estado de emergência, está tudo preparado. Os que decidem serão os mesmos, os de sempre (não os médicos). E no final, morreu muita gente porque tinha de ser assim. Democracia no seu melhor!