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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Tentar perceber

Os sacrificados do progresso

04 nov, 2017 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


A democracia liberal ainda não encontrou antídotos para os custos da globalização e das novas tecnologias.

A União Europeia lançou há dez anos um Fundo de Ajustamento à Globalização. Fê-lo por estar consciente de que a abertura comercial ao resto do mundo impulsiona o crescimento económico – mas envolve custos. Nomeadamente, a perda de empregos pouco qualificados, que emigram para países de mão-de-obra mais barata.

Em 2015 e 2016 este Fundo prestou assistência a quase 20 mil trabalhadores despedidos e a 1251 jovens que não estudam, nem trabalham e não seguem qualquer formação. Portugal não figura entre os onze Estados membros que solicitaram assistência ao Fundo – a qual envolveu, nesses dois anos, mais de 70 milhões de euros, completados com 48 milhões dos países assistidos.

Trata-se de uma iniciativa louvável, mas que representa apenas uma gota de água no mundo de problemas suscitados pela globalização e, sobretudo, pelas novas tecnologias. Não se deve esquecer, porém, que a globalização tirou da miséria centenas de milhões de chineses e outros asiáticos. E as novas tecnologias poderão, espera-se, criar novos empregos em quantidade razoável.

Revolução industrial

A revolução industrial, desencadeada em finais do séc. XVIII em Inglaterra, trouxe uma melhoria do nível de vida da maioria das pessoas nos países por onde ela se espalhou. Mas essa melhoria não foi imediata, longe disso.

Num primeiro momento a utilização de máquinas movidas a vapor tirou o emprego a numerosos trabalhadores, alguns dos quais reagiram destruindo as máquinas. Depois, a vida nas fábricas do séc. XIX era brutal e violenta, bem pior do que nos campos, de onde tinha partido a maioria dos operários. Longas horas de trabalho, envolvendo também mulheres e crianças, salários de miséria, nenhuma defesa para desgraças como despedimentos, doenças, etc.

Daí uma revolta generalizada da classe fabril – era o que se chamava a “questão social”. Não surpreende que a generalização do sufrágio universal, a partir do início do séc. XX, tenha levado os políticos a responderem, pelo menos parcialmente, às aspirações dos operários, esboçando um Estado social que os defendesse dos azares da vida.

Entretanto, a revolução industrial foi criando, ao longo de décadas, muito mais empregos que que aqueles que o recurso a maquinaria tinha inicialmente eliminado. Assim, o capitalismo industrial – nomeadamente nos EUA – fez transitar para a classe média milhões de proletários.

Inversão de tendência

O problema é que essa tendência democratizadora na economia se inverteu a partir do último quartel do séc. XX. Nos EUA a classe média praticamente viu estagnar os seus rendimentos nos últimos trinta anos, enquanto uma pequena minoria – há quem aponte 1% da população – enriqueceu espectacularmente.

Será que as novas tecnologias e a globalização provocarão uma multidão de “sacrificados do progresso” da mesma ordem de grandeza do que a revolução industrial no séc. XIX? Os populismos que se multiplicam, o regresso a protecionismos (que foram fatais nos anos 30 do século passado), a descrença na democracia liberal, e muitos outros sintomas negativos são preocupantes.

O colapso do comunismo soviético acabou com uma ditadura tirânica, mas teve alguns efeitos perversos. Um dos factores que levou a uma certa humanização do capitalismo foi o receio de que o comunismo se implantasse também no Ocidente. Na Europa ocidental havia partidos comunistas poderosos, nomeadamente em França. Daí que alguns apoios sociais visassem, além do mais, prevenir a sovietização em países europeus e americanos.

Colapso do comunismo

Ora o colapso do comunismo soviético levou numerosos gestores e empresários capitalistas a julgarem que passara a valer tudo. Há dez anos, a grave crise financeira global revelou, porém, as limitações do capitalismo selvagem e irresponsável. Só que nem assim deixaram de se alargar as desigualdades de rendimentos.

E, nesta era de globalização, surgiram factos surpreendentes. Por exemplo, diminuiu a mobilidade dos trabalhadores americanos dentro do seu país, que era grande. A percentagem de americanos que atravessam as fronteiras dos seus Estados em busca de emprego é hoje metade da registada nos anos 90 do séc. XX. A habitação cada vez mais cara, o número crescente de casais em que ambos trabalham, a necessidade de cuidar de familiares mais velhos, etc., tudo isso travou a mobilidade dos trabalhadores americanos.

Acontece, ainda, que a política fiscal, que podia e devia ter um efeito redistributivo, nos EUA tem tido o efeito contrário: beneficia os ricos, apesar de alguns destes já terem pedido publicamente para pagarem mais impostos…

A democracia liberal ainda não conseguiu encontrar antídotos eficazes para compensar os custos da globalização e das novas tecnologias. O que coloca em risco essa democracia, que é a nossa.

Comentários
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  • pedro miguel
    06 nov, 2017 00:12
    apesar de nao acreditar no fim do mundo, nem por isso deixo de ter um nao sei que de toto, e encaro as tecnologias como tretas, nomeadamente na criaçao de emprego. A tecnologia significa, isso sim, menos emprego, pois consegue mais, ou seja a tecnologia será futuro, terá futuro enquanto houver poder de compra, coisa que com cada vez mais excluidos, nao estou a ver. Vejamos, a tecnologia eliminou a mao de obra nas portagens das autoestradas, ou seja, de todo nao será necesaria tanta gente a produzir, montar e a manutençao dessa tecnologia. Ok, estou a ler o post tipo passo a passo, vou no momento em que nos eua milhoes passaram para a classe media. Sim, mas estamos a falar de pobres que abandonaram a pobreza, pois como os rurais pobres nas fabricas, mas so nas fabricas conheceram o que era dinheiro. Agora é diferente, e nao querendo ser pessimista, nao se caminha para a saturaçao ? Enquanto houver credito mais que facil, e consumo desenfreado e mesmo insensato, a coisa lá vai, o fugir para a frente. Veja-se : quando formos todos classe media, pela logica de progressao no passado, transitamos para ricos, com que dinheiro ? tipo , se somos tao autosuficientes, genero viver sem o que nao temos, dinheiro, quem vai estar empregado e para que ? , recebendo sabe-se lá que salario. e pronto, conclui a leitura. Sem ver v/ Exª definir democracia. Nao sera a democracia um genero governo costa apanhado pelos incendios ? Só se a democracia for um limitador de velocidade...
  • Pedro Silva
    05 nov, 2017 Lisboa 22:05
    É bom ver o Dr. Sarsfield Cabral reconhecer que o colapso do comunismo não foi bom para o Mundo. De facto, as sociedades precisam de equilíbrios e de ajustes. Há que fazer valer as sociedades que prezam mais a educação, a habitação e a saúde dos seus. Neste aspecto, vemos algumas sociedades a tentar mudar. Infelizmente, todas elas são atacadas pelo Dr. Sarsfield Cabral.
  • José Cardoso
    05 nov, 2017 SP 13:55
    O que Sarsfield Cabral escreve neste artigo, previ eu há mais de 30 anos. O fim do comunismo, que abomino, foi uma desgraça. As sociedades mais justas, precisam de equilibrios. O homem é um ser egoísta e precisa quem lhe resfrie os instintos selvagens.
  • José Gomes L
    05 nov, 2017 Lisboa 12:58
    Ora aqui está um comentário com o qual eu concordo totalmente. Eu já tinha por aqui escrito algures, que era o medo do comunismo que balizava indiretamente, claro está, as democracias. Cabe naturalmente aos governos salvar a democracia, um dos caminhos é colocar impostos mais altos aos gestores que recebem ordenados e outros vencimentos demasiado altos em relação aos ordenados dos trabalhadores das empresas que administram. Limitar os ordenados dos gestores em relação ao ordenado mais baixo da própria empresa, através da aplicação de impostos.