29 jun, 2017
Se fizermos uma avaliação muito simples e superficial do que se vai dizendo nas redes sociais por estes dias percebemos muito depressa que ‘aquela coisa do Salvador’ supera, de longe, as notas positivas sobre o concerto de recolha de fundos para auxiliar as vítimas do incêndio.
Este facto produziu, ato contínuo, um novo discurso indignado assente em variações sobre os temas da insalubridade das redes, a sua propensão para exagerar ‘o que há de pior’ ou os seus perigos (ah, os seus perigos - sempre presentes e sempre tão merecedores de atenção por parte dos média).
Esta leitura - que se propaga, também ela, à velocidade de todas as outras indignações - assenta em dois grande equívocos que importa assinalar: a ideia de que a tecnologia nos muda e a coadjuvante ideia de que, nas redes, nos comportaríamos de uma certa forma.
Porque somos invadidos por um discurso excessivamente benigno sobre a tecnologia (é ele que alimenta o desenvolvimento de produtos ‘que vão mudar a nossa vida para sempre’ e que celebra de forma efusiva eventos quasi-religiosos como as Web Summits e seus sucedâneos) somos levados a acreditar que precisamos constantemente de mais e melhor, que precisamos de ‘soluções’ para os ‘problemas’ que temos e que uma existência em estado fluído de ‘mudança’ (às vezes chama-se-lhe flexibilidade, adaptação, reforma, reconversão, ou coisas do mesmo tipo) é o ideal. As redes às quais acedemos com os tais dispositivos tecnológicos são enunciadas como complemento natural de uma nova forma de estar, de uma nova vida; devem, por isso, ser espaços de networking, de career advancement, de strategic self-promotion, de creative enunciation, e naturalmente também e sempre de image upgrade ou de skills promotion (conceitos deliberadamente escritos noutra língua porque é assim que eles são, tantas vezes, pacoviamente apresentados em eventos em Língua Portuguesa).
Devidamente equipados com lentes deste tipo, vemos as tecnologias e as redes que usamos como ferramentas para nos levar sempre desta para melhor, deixando para trás o complicado, o feio, o deselegante, o ineficiente, e até mesmo essa coisa da comunicação-que-faz-comunidade-seja-sobre-o-que-for, o ordinário mexerico.
Em combinação, estes dois equívocos deixam-nos meio atarantados quando acedemos ao fluxo de uma das nossas redes sociais favoritas, perdidos algures entre a incredulidade e a pulsão para embarcar numa das muitas oportunidades de indignação colectiva que se nos apresentam.
Mas então, o que é feito das novas mulheres e dos novos homens desse futuro que nos é prometido a cada novo dispositivo? Podemos mesmo ser assim? Frívolos? Efervescentes? Coléricos? Desinformados? Mal informados? Desinteressados? Displicentes? Incoerentes? Desorganizados?
Podemos, sim.
O que está em causa não são as oportunidades de comentar ou partilhar isto ou aquilo nem mesmo as ações ou omissões que lhes dão substância; pelo contrário, elas serão (com todos os muitos riscos envolvidos) sinais de ativação mínima de cidadania. O que está em causa é o olhar em tons de rosa clarinho que - à força de tanto o vermos propagandeado por políticos e especialistas - lançamos sobre a nossa existência colectiva online.
As redes somos nós. Nem mais, nem menos. E temos que nos habituar a isso.