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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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​NEM ATEU, NEM FARISEU

Ser cristão no coração da trevas

20 jan, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Como dizia Chesterton, não devemos amar o cristianismo, mas sim Cristo; não devemos amar uma humanidade vaga e abstrata, mas sim pessoas concretas.

No meu processo de conversão, o romance “A Estrada” foi fundamental. Costumo dizer a brincar que este livro de Cormac McCarthy é o meu quinto evangelho. Na altura (2009), já não era ateu e estava naquele centrão teológico chamado agnosticismo, que é uma forma chique de dizer ainda-não-tinha-coragem-para-dar-o-passo-em-direcção-de-Deus.

O livro parte desta pergunta: o que fazer no coração das trevas? Num mundo apocalíptico sem qualquer esperança, num mundo que parece o local da batalha onde Lúcifer venceu Gabriel, como é que mantemos a nossa decência? Como é que mantemos a nossa moral num mundo que nem sequer é imoral mas sim amoral, tal é a indiferença perante o mal? A própria ideia de “moral” é concebível num mundo onde até o canibalismo se torna normal? Quase dez anos depois, o filme “Silêncio” de Martin Scorsese remete-me de novo para essa questão. Só que agora, já na condição de convertido, coloco a palavra “fé” onde antes tinha a palavra “moral”. Como é que se serve Deus e Jesus a partir do coração das trevas? A própria ideia de “fé” faz ali sentido?

A força do filme reside no dilema colocado aos três jesuítas portugueses que protagonizam a história: Ferreira (Neeson), Garupe (Driver) e Rodrigues (Garfield), a personagem principal. As autoridades japoneses do século XVII querem exterminar a memória do cristianismo no Japão. Torturam e matam cristãos. Para um cristão, o Japão é o apocalipse de “A Estrada”. No menu deste apocalipse nipónico, encontra-se uma tortura mental imposta a todos os padres portugueses: têm de renunciar publicamente à fé (apostasia).

No início, Rodrigues segue a teoria e considera inaceitável a apostasia. Porém, depois de muitas peripécias e do continuado silêncio de Deus, ele descobre que fazer a tal apostasia (meramente verbal, exterior, burocrática) é o caminho mais cristão de todos. Porquê? Os inquisidores japoneses colocam Rodrigues perante um dilema: se ele não renunciar a Deus e a Jesus, os samurais assassinarão os cristãos japoneses que estão a ser torturados ali à sua frente. Deve ele manter a honra e a coerência absoluta da fé ou deve conceder no sentido de salvar vidas? No auge do dilema, o filme dá-nos finalmente a voz de Deus, que diz a Rodrigues para apostatar. É Deus que dá a ordem: pisa a imagem de Jesus.

Contradição? Incoerência? Não me parece. A força do cristianismo está na recusa do paganismo que não concebe a transcendência, mas também está na recusa de um Deus platónico que não vem até nós. E o pior que pode acontecer a um cristão, parece-me, é ficar apaixonado pelo cristianismo enquanto ideia abstracta, geométrica, sem imperfeições.

Como dizia Chesterton, não devemos amar o cristianismo, mas sim Cristo; não devemos amar uma humanidade vaga e abstrata, mas sim pessoas concretas. O cristianismo, antes de ser teoria, é biografia. Rodrigues percebe ali que não serve de nada manter uma fé teológica de 20 valores se depois esquecemos as pessoas de carne e osso que nos rodeiam.

A fé cristã deve ser uma paixão, e não o sistema filosófico da nossa vaidade ou coerência intelectual. Não, o nosso Deus não está num símbolo material que se pisa, nem sequer está no discurso exterior, está nesta paixão interior e inviolável, uma paixão que nenhum poder terreno pode destruir. Por outras palavras, o silêncio central do filme não é o silêncio de Deus, mas sim o silêncio de Rodrigues e Ferreira que assumem aquela desonra pessoal (serem considerados apóstatas em Lisboa) para assim salvarem pessoas concretas, para serem personificações concretas das lições do Evangelho.

Comentários
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  • António da Cunha Dua
    25 jan, 2017 kassel 10:35
    Exactamente! Para o cristão consciente, fé é relação, é processo e não mera crença. O silêncio de Deus não pode ser cristalizado nas pedras da matéria nem no encrustamento intelectual, (no absurdo de uma ieia ) que, para ser humano, terá de ser vivificado pelo coração. O desejo de imortalidade ergueu-nos o olhar do mero caminhar e da terra para novas perspectivas e descobertas pois não é só a terra que nos sustenta nem a matéria “espiritualizada” na recordação podem ser o sentido apenas satisfeito na memória dos vindouros (a droga do esquecimento não pode ser alienada na da lembrança!). Ele desceu aos infernos da terra para depois de três dias mostrar que a estrada não acaba na tumba; no vazio da treva fermenta a vida aquecida pela luz. Somos mistério, feitos de céu e terra daquela matéria que é luz concentrada e quando se desce a ela, ela se transforma, evapora e brilha como a a luz da vela no pavio. Também Jesus Cristo é feito de Céu e terra e a sociedade é feita de instituiçao (que transmitem a vida) e indivíduo, de comunidade e pessoa. Aquilo que criticamos na instituição e no outro é muitas vezes a mesma força negativa que nos move e actua também nesses outros. A crítica é muitas vezes o próprio túmulo onde se vive e mera tentativa de através dela se sair dele; o problema vem do facto de quando se negam os outros se faz isso para se branquear e justificar uma vida pelo beco sem saída de uma lógica que só pode ser iluminada pelo mistério. www.antoniojusto.eu
  • Malaquias
    22 jan, 2017 Mesopotanea 14:48
    Vamos desenvolver o tema: não devemos amar o cristianismo, mas sim CRISTO. Grande frase. Digo isto , porque a maior parte dos bispos , padres e fariseus portugueses amam o Cristinianismo e a eles próprios. ;Mas não amam a Cristo. Porque, se amassem a Cristo , com toda a sinceridade e rigor, o mundo não seria tão injusto. Os bispos e padres da igreja católica portuguesa, de hoje , têm a mentalidade dos antigos príncipes dos sacerdotes e escribas de ontem. Lêm e ouvem as palavras sábias dos antigos profetas e do próprio Cristo, mas despresam - nas . A luz tem a obrigação de iluminar a escuridão. Tem a obrigação mas não a cumpre . Hoje fiquei triste ao ler a notícia: Homenagem a um odre velho. E li o discurso de um odre velho a elogiar outro odre velho. Desgraçados. Desgraçados! Não adivinham a cólera que está para caír sobre eles. Desejo - vos um Santo Domingo. Dia de meditação e conversão.
  • Vera
    22 jan, 2017 Palmela 05:35
    Henrique Raposo, quer um bom conselho, deixe o cristianismo e dedique-se à pesca! talvez tenha mais jeito...
  • António Costa
    22 jan, 2017 Cacém 04:30
    Salvar vidas ou desistir delas? Uma das coisas é o sentido da vida, a vida precisa de ter sentido. Na vida sem sentido, apenas existe vazio. Esse "vazio" é imediatamente aproveitado por outros que instrumentalizam as pessoas. A "droga" é usada para "esquecer". "Bebo para esquecer a vergonha de que bebo" dizia o "habitante" do 3º planeta "visitado" pelo Principezinho de Saint-Exupéry. Esquecer o "vazio" E nem vamos entrar nas pessoas que se matam, suicidam em atentados, no fundo para "darem sentido" à sua vida....Mais do que "salvar vidas" é muito mais importante "salvar o sentido das mesmas". É isso que nos torna Homens e Mulheres e não "vegetais". É também no coração das trevas onde a Luz faz mais falta. Quem vive "cercado de luz" esquece-se muitas vezes do que é a Escuridão.
  • Ângela Veloso
    21 jan, 2017 Lisboa 15:23
    «Não, o nosso Deus não está num símbolo material ...» O Deus de Henrique Raposo e de quem acreditar neste medíocre autor. De acordo, com Marco: Texto falhado e péssimo raciocínio acerca do último filme de Martin Scorcese.
  • Marco Visan
    21 jan, 2017 Porto 09:18
    Quem é Henrique Raposo para afirmar aquilo que a fé deve ser? Mais uma crónica falhada.
  • Joaqum Santos
    20 jan, 2017 Tojal 23:59
    O articulista é tão apóstata, como o é o autor do filme.
  • MASQUEGRACINHA
    20 jan, 2017 TERRADOMEIO 19:59
    Pois é: no auge do dilema, no clímax cinematográfico, Rodrigues tem a vida muito, muito, facilitada, com o próprio Deus a ordenar-lhe, de viva voz, o que tem que fazer - assim salvando vidas e, de caminho, também a sua. Pois é: assim também eu, se me é permitida a expressão coloquial. Nem sei muito bem o que pensar dos primitivos mártires cristãos (e dos modernos também, já agora), se a solução é assim tão simples. Ou até do próprio Cristo, de cujos lábios o Pai não afastou o cálice do sofrimento, nem a pedido... e que viria a perguntar, por sua vez, a Pedro, que fugia, "Quo vadis?". Ou o que pensar, em termos de simples valores morais, e só como exemplo, de alguém como o Egas Moniz, esse escravo da palavra, de corda ao pescoço, ele e a família toda. De facto, nenhum objecto, por mais simbólico ou amado que seja, merece uma vida humana - a própria ideia é absurda, embora um absurdo frequentemente praticado. E suponho que seja a isso que o filme e o entusiasmo do articulista se referem, e não à simpática descoberta de que o que Deus quer (e ordena explicitamente!) é que salvar a vida, e outras vidas, é o verdadeiramente importante, ainda que à custa da abjuração. Seria abrir a porta a todas as cobardias, e colocar ao nível de parvos todos os mártires religiosos, políticos e morais, que vieram fazendo do mundo um sítio, apesar de tudo, mais habitável. E a grande maioria deles sem terem ouvido vozes, apenas a sua inteligência, coração e consciência.
  • João Galhardo
    20 jan, 2017 Lisboa 14:54
    Péssima opinião sobre o tema. Mais uma má exposição de Henrique Raposo.
  • Indignada
    20 jan, 2017 Fig. da Foz 13:49
    Sr. Raposo, boa exposição..., continue, afim de arejar essa rádio.