19 jan, 2017
A indicação do funcionário japonês é formulada em tom convidativo. À sua frente há uma fila de cristãos e cada um sabe bem o que o espera: ou pisa o “fumie” – uma espécie de ícone em alto relevo, com a Imagem de Cristo – sinal público de que renega o baptismo, abjurando a fé católica; ou então, se se recusa a pisar, é levado para a tortura da fossa e morte cruel.
A alternativa parece desproporcionada, pois, para escapar a tão terríveis tormentos, os homens de poder insistem com os simples fiéis das aldeias: “Pisar o ‘fumie’ é só uma formalidade e que basta pores o pé levemente e já está, ficas livre!”
Em “Silêncio”, de Martin Scorsese, o contraste é perturbador, pois aqueles que se recusam a pisar mantêm uma certeza e uma serenidade que os ultrapassa, enquanto quem pisa – e, supostamente, fica mais livre – afasta-se, de semblante infeliz e amargurado.
O dilema atinge o seu clímax quando toca os missionários jesuítas. Dados históricos demonstram que a maioria dos sacerdotes morreu mártir, mas nem todos. No filme, o padre português Cristóvão Ferreira – figura importante na Companhia de Jesus e referência para sucessivas gerações de missionários – após submetido à tortura da fossa, pisa o “fumie”. O apóstata Ferreira passa, então, a ser usado pelas autoridades japonesas para convencer os outros missionários a abjurarem, tal como ele.
Ferreira – incapaz de olhar nos olhos o seu antigo aluno Sebastião Rodrigues – pressiona-o ao gesto público do “fumie” porque a dimensão privada é que vale: “Não interessa o que diz a Igreja Católica, mas a tua consciência e a relação directa com o Senhor”, sussurra-lhe, ao ouvido, o seu ex-mestre.
Mas o filme não se reduz a este horror. Este “Silêncio” também fala de conversão e da misteriosa possibilidade de começar e recomeçar sempre (às vezes com repugnância), apesar de tantas quedas e traições. Porque a objectividade dos sacramentos é infinitamente superior à miséria de quem peca. E aqueles que O reconhecem, na verdade, é que são livres.