Tempo
|
Graça Franco
Opinião de Graça Franco
A+ / A-

​Mário Soares. Garante da liberdade e da democracia

07 jan, 2017 • Opinião de Graça Franco


Adeus! Presidente. Obrigado. Em nome de todos os portugueses. Por ter sido tão nosso e tão de todos.

Tinha um feitio agreste que afastava os que lhe eram menos próximos. Mas um carisma do qual irradiava idêntico fascínio para todos os que se cruzavam com ele. Lia-se-lhe nos olhos a força dos que acreditam, sem se deixarem travar pela espuma dos dias. Não gastava palavras mas quando as pronunciava ora as rodeava de uma autoridade pensada, ora lhe saíam numa fúria incontida de quem se considera quase sempre certo. Viveu a rara sabedoria dos que sabem escolher o lado certo da história nos momentos chave, sem temer nunca a solidão do fracasso que, aqui e ali, o fez cair para o lado errado. Críticos ou apoiantes, todos lhe reconhecem o papel decisivo na conquista da Democracia, na salvaguarda da liberdade, na entrada no clube da Europa dos livres e dos ricos. O suficiente para que todos lhe sejamos devedores de uma forma ou outra, de um justo e sincero obrigado.

A Igreja portuguesa, e a Renascença em particular, têm para com ele essa enorme dívida de gratidão. Como mais ninguém, no pico do PREC, soube perceber que a nova República nascida do 25 de Abril não podia repetir os erros da primeira. Republicano, laico e socialista foi o primeiro a travar qualquer reminiscência de um jacobinismo serôdio, tantas vezes maioritário entre as suas hostes.

Já numa entrevista gravada em Paris em 1972 para o jornal República (só publicada em 74 no dia em que chegou a Santa Apolónia), foi pronto a encerrar uma eventual questão religiosa e a mostrar que, na óptica da “corrente socialista e humanista em que se filiava” e apesar do seu assumido agnosticismo, via a conquista da Democracia um objectivo comum que só podia ser alcançado “em estreita e fraternal comunhão entre católicos e não católicos”.

Não admira por isso que tenha sido o primeiro a defender a liberdade religiosa, no caso a Renascença, e a contrariar a tentativa de assalto ao Patriarcado. Ele e a família estiveram lado a lado com o povo católico (Maria de Jesus só se converteria muitos anos mais tarde e estávamos então muito longe do fascínio que publicamente chegou a devotar ao Papa Francisco). Nessa altura a presença soarista foi decisiva para travar a invasão e pôr fim à tentativa de sequestro. Em contrapartida, conseguiu ter a Igreja de Lisboa em peso, mobilizada quase paróquia a paróquia, para a grande manifestação da Alameda na hora de dizer basta às derivas esquerdistas das ditaduras populares e à consolidação do poder comunista.

A direita demorou tempo a interiorizar o seu papel na descolonização. No entanto, até aí, a história viria a provar que entre as forças do “bom senso” pontuava Soares contra as derivas colonialistas e a enxurrada revolucionária adepta de destruir, às vezes depressa demais, o que levaria sempre demasiado tempo a construir de novo.

A paz interna dos novos países não ficou assegurada, e as ditaduras locais vezes demais se substituíram à descolonização “gradual pacífica e negociada” que ele defendia desde 69. Talvez fosse possível ter feito melhor, sobretudo se as teses de Soares defendidas muito antes da Revolução tivessem tido maior acolhimento à esquerda. No turbilhão revolucionário era tarde demais.

No Público, em entrevista concedida pelos 25 anos de Abril, confessava a Maria João Avillez que teria gostado mais de ter conseguido como Ministro dos Negócios Estrangeiros dos primeiros governos o que sempre defendera até aí: “uma evolução lenta, gradual e controlada.Com o auxílio dos americanos e dos europeus”. Algo que tivesse conduzido à sonhada “autodeterminação das colónias” através de “uma paz negociada em África”. Entre os seus “erros” reconhecia, então, o facto de nunca ter falado com Marcello Caetano (do qual fora aluno) sobre essa possibilidade quando, de regresso do exilio em S. Tomé, ainda haveria tempo para o fazer.

Choque entre dois grandes

Em matéria de “erros”, e não terão sido poucos os que cometeu ao longo de uma vida tão longa e tão cheia, nem sempre os reconheceu. Entre eles avulta a relação com Eanes. Um confronto de estilos de liderança praticamente inconciliáveis entre o “bon vivant” literato, que nasce e cresce no meio oposicionista lisboeta e se comporta como Rei rodeado da sua infinita corte, de que não controla os pergaminhos, e de quem aceita acéfala fidelidade, e, por outro lado, a política do militar austero, frequentemente só, e incapaz de permitir o uso desnecessário de um cêntimo do erário público.

O homem impoluto que acabou líder de um movimento anti-corrupção, ameaçando os interesses socialistas e os interesses económicos de um “certo centrão” em que pululavam muitos ditos “soaristas”, nunca suscitou a simpatia de Soares, anti-militarista primário e que nunca lhe perdoou a criação de um PRD que momentaneamente penetrou a fundo na facção mais à esquerda e independente do Partido Socialista.

Em política, para Soares, bastas vezes os fins justificaram os meios, como reconhecem os seus mais próximos e mesmo os seus amigos. Não se dizia nem queria ser visto como “impecável” (noção a que a sua arreligiosidade o tornava particularmente avesso). E embora cultivando uma imprensa que gostava de ver “sob controlo”, convivia bem com as “criticas” e os casos que envolviam alguns dos seus fieis.

Eanes, pelo contrário, não se permitia aí a mais pequena cedência, fazendo gala de uma vida contida e austera, pagando do seu bolso muitos gastos “banais”, a que as despesas de representação deviam dar cobertura. Soares irritava-se com essa abissal diferença, que entendia como “salazarenta”, e acabou a dar provas de estranha mesquinhez em relação ao antecessor, que destoou da magnanimidade que o caracterizou em múltiplas outras actuações.

Mesmo quando acabaram lado a lado em momentos graves em que a Pátria o exigiu, ou se colocaram assumidamente do mesmo lado da barricada (contra o “troikismo” e no apoio a Sampaio da Nóvoa) não deixou de se sentir uma incontida incomodidade.

Testemunha da história

Era jornalista estagiária quando tive com Soares o meu primeiro contacto próximo. Nomeada pelo director do meu jornal (Mário Mesquita, co-fundador do Partido Socialista no encontro na Alemanha de 1973), cabia-me entrevistar o primeiro-ministro que estava em rota de colisão com a linha editorial demasiado “livre” para o seu gosto do DN, então um jornal público. Eu fazia “economia” e era enviada como especialista no processos de pré- adesão em curso, ele era conhecido por “trocar” os números e nunca “estudar os dossiers” que eu, por dever de ofício, era suposto conhecer de fio a pavio. Sem sequer perceber o que me acontecia, a minha escolha foi vista como uma “afronta” em Belém.

Durante a primeira parte da entrevista respondeu sempre tenso e mal-humorado. Mas quando lhe falei de Almeida Santos como “sua sombra” (tema que eu não supunha tão sensível na altura…), saltou da cadeira em fúria e disse que a entrevista continuaria no dia seguinte ou terminava ali. O tempo estava esgotado, disse o entrevistado.

Voltei no dia seguinte para desagrado do meu director, e enquanto aguardava pelo chefe do Governo antes de recomeçar, o porta-voz entregou-me uma edição do “Portugal Amordaçado” (o livro ícone, escrito na “prisão” em S. Tomé e publicado em 72) com uma dedicatória inesperada e afectuosa. Manteve-se a natural tensão entrevistador/ entrevistado durante alguns minutos, mas a última parte da conversa acabou já cordata passeando nos jardins de S. Bento. Soares era assim: um sedutor.

Em Paris, por esses anos, tive ocasião de verificar o que era um primeiro-ministro português com enorme peso no mundo. Quando uma roda de jornalistas estrangeiros o rodeou sedenta de saber notícias sobre os avanços da paz no Médio Oriente, no final de um encontro da Internacional Socialista. Frases como “mon ami Miterrand” não tinham o som a ridículo das posteriores imitações. Eu fui, então, a única interessada em ouvir os outros políticos na sala.

Entrámos na Europa através de uma diplomacia intensa a que os jovens jornalistas, como eu, iam conhecendo aos poucos, diplomacia cheia de artimanhas criativas, como o célebre “constat d’accord”, uma invenção soarista que nos abriu definitivamente as portas do clube . Em certa medida consciente de que Portugal nunca entraria sem a Espanha, abriu também as portas ao país vizinho, oferecendo a partir daí uma estratégia vencedora a Felipe Gonzalez.

Durante esses tempos, que começaram nas primeiras negociações com o FMI (em que os peritos desembarcaram em Lisboa quando já não havia dinheiro suficiente para pagar as remessas de cereais à espera de desembarque), aos tempos do Governo do Bloco Central, passando por toda a negociação do processo de adesão Soares, tornou-se um interlocutor, nunca fácil mas frequente, dos que como eu seguiam matérias económicas.

Escutava as opiniões diferentes e não raro pedia a fundamentação. Não admitia “encomendas” mas ouvia o contraditório se entendia que alguém estudava seriamente um “dossier”, ou apresentava argumentos válidos em abono da tese contrária. Isto, mesmo que visse no interlocutor um adepto do lado oposto ao seu espectro político. Uma conversa com Soares era sempre um momento política e culturalmente enriquecedor.

Sem ele e o seu europeísmo a sorte de Portugal teria sido bem diferente. Quando o eurocepticismo de Cavaco entrou em cena já era tarde demais para travar o processo que muito mais do que nos oferecer uma oportunidade única de desenvolvimento e progresso garantiu definitivamente a Democracia a Portugal.

Os socialistas nem sempre estiveram ao seu lado. As diferenças no partido sempre a várias vozes fizeram-no afastar dos seus amigos e “irmãos mais próximos”. Lutou contra Zenha e inopinadamente ganhou. Mostrou uma coragem política e humana permanente (quando não temeu as ameaças das bandeiras negras da Marinha Grande, Teve um inesperada vitória contra Freitas _ que antes de ser presidente afinal já não era. Já mais velho voltou a enfrentar em Manuel Alegre “um dos seus mais próximos”. Perdeu. Mas nem isso lhe travou a liberdade de dizer a cada passo o que queria. Puxou injustamente o tapete a Seguro para estender a passadeira vermelha a António Costa. Foi um avô “bloquista” para os netos ( Galamba, Moreira, Sousa Pinto) do social- esquerdismo. Tantas vezes perante os receios de uma deriva esquerdista de Maria Barroso que inesperadamente o deixou sem a “metade” do amor incondicional que lhe prolongava a vida.

Numa hora de dor como esta. Tenham sido quais foram as divergências que sentimos ao longo do seu percurso político tão rico quanto polémico. É impossível que não tenhamos gritado alguma vez que Soares foi Fixe. Muito fixe. Não apenas presidente dos outros ou apenas dos que lhe deram o voto. Soube como ninguém ser Presidente até dos “inimigos”. Hoje morreu um bocado da nossa história comum. Por isso lhe devemos um profundo obrigado.

Adeus! Presidente. Obrigado. Em nome de todos os portugueses. Por ter sido tão nosso e tão de todos.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • É como os outros
    10 jan, 2017 Póvoa 12:25
    Isto que a comentadora INDIGNADA diz é muito pouco, há muito mais a dizer. Não devemos nada ao MS.
  • Mário V.
    09 jan, 2017 Lisboa 12:34
    «Escutava as opiniões diferentes e não raro pedia a fundamentação.» Esta e outras frases deste texto são tão bonitas. Apenas falta uma música de fundo para as acompanhar. «Não admitia “encomendas” mas ouvia o contraditório se entendia que alguém estudava seriamente um “dossier”, ou apresentava argumentos válidos em abono da tese contrária.» É lindo.
  • João Correia
    09 jan, 2017 Portalegre 12:33
    Dra. Graça Franco não devemos endeusar o Dr. Mário Soares, foi um homem com importância num determinado período, como outros do seu tempo. Mais tarde, sem sentimentalismos e outras emoções a história mostrará o que na realidade foi este senhor. O OBRIGADO deve-se antes de mais ao Povo Português que mesmo nos momentos mais difíceis soube ser sereno e mostrar bom senso quando as suas elites nunca se mostraram à altura, como foi o caso da descolonização, dos desvarios económicos e muitas outras.
  • ALETO
    09 jan, 2017 Porto 11:13
    Muito oportuno o artigo de Graça Franco, como também muito exagerado. Os mais esclarecidos e informados sabem que Mário Soares não foi o que está aqui escrito.
  • Ângela Veloso
    09 jan, 2017 Vila Franca de Xira 09:11
    «Lutou contra Zenha e inopinadamente ganhou.» Seria interessante rever o debate entre Soares e Zenha, para perceber quem foi agressivo e quem mostrou ser mais demagogo. Devido ao seu comportamento imoral nos debates em usar tudo contra todos, Soares perdeu um amigo de longa data em Salgado Zenha. Graça Franco pode dever muito a Mário Soares. Muitos sabem que não lhe devem nada.
  • Marco Visan
    08 jan, 2017 Porto 18:01
    Não há como Graça Franco para exagerar sobre a vida de um defunto. Se Mário Soares lesse este artigo de Graça Franco, muito provavelmente dizia: «A minha morte foi um exagero».
  • Marques Patrício
    08 jan, 2017 Sintra|||||TERRA 15:56
    Não conheci pessoalmente o Drº Mário Soares. Coincidentemente, ou não cruzei-me com o Drº Mário Soares, e com sua filha Isabel, na praia grande faz muito anos....Bem como Maria de Jesus Barroso..... :) ..................................................Iniciática competência.... irá exercer noutra aventura, não por cá TERRA, mas em ( ). Marques Patrício.
  • Moisés
    08 jan, 2017 Egito 15:23
    Esta desgraça Franco não tem vergonha na cara! Diz que é católica mas defende demónios e lúciferes . Sem vergonha. Continuo a acreditar em Deus. Mas : aos bispos, padres e à renascençalanço - lhe água benta e digo: afastai - vos de mim, diabos. Um Santo Domingo.
  • Indignado
    08 jan, 2017 Tomar 14:58
    Assiste-se a uma acção de branqueamento do tipo totalitário..., todos estão afinados pela mesma batuta, usam a mesma canga..., infelizmente, até aqueles que se dizem católicos. Como é possível elogiar o pai do aborto=matança de inocente e indefesos, o pai das clínicas abortivas=campos de extermínio? Numa atitude intelectualmente honesta, como podemos criticar os socialistas que criaram campos de concentração onde morreram milhões e elogiamos quem legalizou a matança de inocentes noutros campos de extermínio, mas está mascarado de democrata?
  • Miguel Botelho
    08 jan, 2017 Lisboa 11:30
    «Republicano, laico e socialista foi o primeiro a travar qualquer reminiscência de um jacobinismo serôdio, tantas vezes maioritário entre as suas hostes» Palavras, palavras... só palavras. Aquilo que dói neste episódio, é que ainda o homem estava em coma e já todos estes oportunistas, como Graça Franco, estavam a escrever os seus textos de despedida. Assim que o homem foi dado como morto, os textos floresceram e os elogios aparecem com todos os exageros conhecidos.