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Opinião de Graça Franco
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Cultura de vida ou de morte

29 jan, 2016 • Opinião de Graça Franco


Está lançado o debate sobre a legalização da eutanásia. É caso para dizer que ainda bem.

Com um manifesto já tornado público, e a que se associam artistas, médicos e investigadores de renome, está lançado o debate sobre a legalização da eutanásia (ainda que sob a designação ténue de “morte assistida”). É caso para dizer que ainda bem. O pior que nos podia acontecer era ver mais uma vez aprovada da noite para o dia, sem que nos déssemos sequer conta, perante a mais profunda ignorância da sociedade, essa nova lei, na voragem legislativa fracturante a que nos habituamos nos últimos tempos.

O tema é difícil e aconselha, como sempre, prudência e um extremo respeito pelas convicções alheias. Mas nem isso, nem o peso das personalidades envolvidas nos devem impedir de participar no debate onde todos temos uma palavra a dizer (não apenas os médicos, mas, também, os mais humildes calceteiros), porque se trata de uma questão civilizacional e da escolha dos valores fundamentais da colectividade onde queremos viver.

Em confronto estão, de facto, duas visões opostas sobre a civilização em que nos inserimos. A que defende uma cultura de vida, em que toda a vida é vista e defendida como “inviolável”, tal como reconhece a Carta dos Direitos do Homem, absorvendo, no fundo, a concepção de vida como um valor “sagrado”, bebida da cultura de raiz judaico/cristã, mas não se esgotando nela.

Do lado oposto, temos a concepção que o Papa Francisco, como antes o Papa Bento XVI, classificaram como “uma cultura de morte”, em que a vida deixa de ser considerada, sempre e em qualquer das suas fases e das suas circunstâncias, com igual “dignidade”. Assim, a vida acaba avaliada pelo próprio e pelos outros em função da sua subjectiva “utilidade”, dando acolhimento à generalizada cultura do “descarte” – dos doentes, dos velhos, dos mais frágeis, dos pouco produtivos, num crescendo imparável, cujas consequências últimas começam a estar infelizmente à vista em múltiplas dimensões da nossa vida colectiva.

Um descarte que vai a par de um culto exacerbado dos direitos individuais e do claro declínio dos deveres pessoais e colectivos face ao outro. Vai-se construindo a pouco e pouco (e esta lei será mais uma peça no caminho) uma sociedade que se desresponsabiliza de cuidar, mas em contrapartida promete a mais total liberdade para que cada um possa cuidar-se ou desistir de o fazer à sua maneira. É o individualismo utilitarista levado às últimas consequências que, neste caso, acaba por associar-se de forma perversa com misericórdia e compaixão.

Não está em causa a recusa do chamado encarniçamento terapêutico que o Testamento Vital já contempla e bem. Nada justifica o prolongamento irracional da vida para além dos limites do bom senso e da vontade do próprio doente, que deve ser livre de recusar tratamentos que considere excessivos ou desproporcionados. A doutrina cristã não o defende nem o aconselha. Por isso é falsa a acusação aos cristãos de uma obstinação de raiz confessional por um prolongamento desnecessário da vida em sofrimento ou sequer o contraponto entre a aposta nos cuidados paliativos em alternativa à eutanásia. São coisas diferentes.

Claro que a ausência destes cuidados e a desgraçada situação de muitos doentes sujeitos a sofrimento desnecessário, a quem a sociedade se mostra incapaz de garantir uma qualidade de vida minimamente razoável, seja o terreno fértil para a discussão demagógica sobre os “méritos” da morte assistida.

Na política de pequenos passos, reconhecido o direito à morte assistida fica escancarada a porta a todos os outros tipos de eutanásia, incluindo a mais perversa e nunca assumida das suas formas (a económica, para poupar dinheiro nos impostos ou outros gastos).

É porque a vida deve ser consagrada como um direito inviolável que há o dever da sociedade como um todo de a defender, inclusivamente de nós próprios. Nenhum respeito pelos direitos individuais e pelo exercício da liberdade própria se deve sobrepor a esse dever colectivo de proteger a vida, toda a vida, qualquer vida.

Porque a sua dignidade é igual e não depende nem pode deixar-se depender, ao invés do que sustentam os subscritores do manifesto, “de critérios de dignidade que cada um construiu ao longo da sua vida”. Ninguém perde “dignidade” por razões de doença ou incapacidade.

É por isso que não hesitamos em colocar a vida de muitos outros em risco numa operação de busca e salvamento sem deixar à sua sorte o turista/surfista, por mais irresponsavelmente que tenha arriscado ou escolhido colocar a vida própria em risco num dia de temporal. É por isso que temos a obrigação moral de salvar todos, seja qual for a sua situação, incluindo os que se fizeram ao mar em botes sobrelotados, que infelizmente sabem ter escassas ou nulas hipóteses de chegar a terra sem essa ajuda… e não os deixamos entregues nem à sua sorte, nem à sua escolha (mesmo que, por absurdo, tivesse havido lugar a escolha).

É evidente que os subscritores do manifesto nos falam do direito a morrer em certas condições muito específicas e não parecem estar a colocar em causa todas as outras dimensões deste direito. Daí o risco acrescido de nos perdermos num debate casuístico e emocional, em que todos corremos o risco de “aparentemente” estar de acordo, mas que tem todos os ingredientes para nos desviar do essencial.

Fala-se, obviamente, apenas de situações extremas de “doentes que sofrem e a quem não resta outra alternativa”, mas acrescentam de imediato que essa avaliação cabe ao doente e não à sociedade fazê-la, admitindo o subjectivismo inerente à avaliação, uma vez que a alternativa terá de ser “tida por aceitável ou digna” pelo visado.

Não se trata, como parece pretenderem fazer crer, do direito a não ver a sua vida dependente das concepções religiosas alheias. Essa é uma falsa questão. O problema é

ético, não religioso. Sob a aparência de um acto de compaixão e misericórdia para com quem sofre, abre-se a porta à construção de um caminho de desresponsabilização colectiva sobre o destino do outro, puro individualismo que geralmente leva à mais desapiedada indiferença.

Afirma-se, por exemplo, que a “Constituição da República Portuguesa define a vida como direito inviolável, mas não como dever irrenunciável”, pelo que “a criminalização da morte assistida no Código Penal fere os direitos fundamentais relativos às liberdades”. Então, um direito inviolável não implica necessariamente o dever de o não violar? E quem define quando posso eu renunciar ou não a esse direito? E fazê-lo em nome de que convicções “laicas”, mesmo que exclua por inteiro todas as “confessionais”.

A que título é sequer legítimo (para já não falar do dever estrito…) continuar a fazer tudo para tentar salvar o jovem que tenta atirar-se da ponte porque se sente num sofrimento “atroz” e sem “alternativa” perante o seu primeiro desgosto de amor? Dir-se-á que se impõe o bom senso. Mas o bom senso aqui tem como bengala o mais puro utilitarismo, a vaga percepção de que “há vidas que valem a pena ser vividas e outras que não, ou já não…”. Sem o assumir nunca, é isso que acaba a distinguir as várias situações. Daí à eutanásia económica não é um passo de gigante, é um pequeno passinho.

Nestas questões civilizacionais há sempre o passo seguinte, que no aborto acabou com a liberalização total “até às dez semanas”, consagrada no aborto “a pedido”, e no casamento gay já vai na adopção expressamente excluída da lei inicial. No caso da eutanásia o passo seguinte será ninguém poder opor-se a que um individuo de perfeita saúde física alegue um sofrimento psicologicamente terrível por causa da sua infelicidade/solidão (quantas vezes a pior das dores sofridas…), com o desabafo comum de “já cá não ando a fazer nada…”, concretize o seu suicídio com a preciosa ajuda de uma injecção misericordiosamente ministrada pelo médico assistente.

Para já não falar do passo final: o direito/dever do próprio médico a por fim às vidas que antecipe não poderem reunir as condições de qualidade/ dignidade tidas como razoáveis. O eugenismo não é coisa que não possa voltar a existir.

Em que medida pode a sociedade assistir impassível e serena a isto, sem que lhe assista nenhum dever ou sequer direito a intervir face à renúncia livre e consciente do direito a viver da generalidade dos nossos idosos. Agravada pelo lado perverso de uma sociedade crescentemente egoísta, sedenta da redução de custos do SNS e consequente redução de impostos futuros.

Claro que nada disso está subjacente na argumentação dos proponentes do manifesto. Mas estas mudanças culturais têm, a par dos objectivos “óbvios” e muitas vezes “benignos” e bem-intencionados, outros danos colaterais. Vale a pena debatê-los desde já.

Há mais de uma década acompanhei “in loco” o feroz debate sobre a legalização da eutanásia na Holanda e na Bélgica. O mais chocante foi ver as declarações dos médicos holandeses sobre a ausência de qualquer mudança prática, uma vez aprovada a lei que apenas viria, segundo afirmaram muitos deles, consagrar uma prática já então corrente.

Hoje escandaliza-nos a deriva “individualista” destas sociedades (tão promotoras e respeitadoras de todas as liberdades individuais), bem patente na forma como estão a tratar a questão dos refugiados. E estamos a falar de governos de esquerda não de ideologias nem derivas “fascizantes”. Como o povo costuma dizer na sua infinita sabedoria: “Isto anda tudo ligado…”.

Comentários
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  • Indignado
    08 fev, 2016 Tomar 15:56
    O esquema montado afim de manipular os ingénuos, os estultos e os acéfalos, é o mesmo que foi usado para legalizar a matança de Seres inocentes e indefesos pelo aborto. Ou seja, cria-se uma vítima "irrefutável", cujos corações de reacção primária dos sujeitos acima referidos, vão considerar como ponto único de solução do problema..., e não é, muito longe disso! O que a maioria não percebe, é que o objectivo é começar a eliminar os idosos indesejáveis e dispendiosos. Amanhã, a eutanásia será usada por aqueles que querem apoderar-se dos bens, do"velho"..., basta inventar um esquema compatível com a corrupta e imoral lei..., e já está! Quando é que abrem os olhos? Amanhã, pode ser a sua vez!
  • 01 fev, 2016 11:17
    Realmente anda tudo ligado, impostos, refugiados, SNS, etc . É por isso que, embora concordando com o que refere no artigo, não compreendo como se desconfia e critica tanto as políticas que pretendem devolver salários e pensões devidos aos trabalhadores que vivem do seu salário em geral pouco farto, defender o SNS, sentir vergonha pela forma como a UE recebe os refugiados, os trata e mantém numa situação indigna para qualquer ser humano. A mesma UE que nos obriga a retirar o essencial a quem menos tem para viver. Será o suicídio a que tantos recorrem por desespero, uma "morte assistida" , será que o Papa Francisco concorda com esse procedimento, será um acaso que, em tempo de crise e miséria, o número de ricos aumente e se tornem mais ricos? Serà esta a ssociedade ética e de valores de que se fala quando convém? Ora vamos lá ter decência e não ser hipócrita, que se defenda a vida plenamente e não se faça "politiquice" conforme convém aos interesses individuais ou aos grupos económicos que compraram os jornais para os quais trabalham a maioria dos jornalistas que todos os dias são a voz do dono, o que ainda é bem pior. GF
  • MIGUEL CARDOSO
    30 jan, 2016 PORTO 22:31
    O debate está lançado?... Há, PELO MENOS 10 ANOS que se discute publicamente e na COM SOCIAL, há já mais tempo este tema. Pelo que, qq lei que venha a ser aprovada é comparticipada pela dra Graça Franco!
  • Joao gil
    30 jan, 2016 Lisboa 14:17
    E uma discussao desnecessaria e que vai ter um epilogo que ja se conhece a partida. A fraqueza moral e éatica da minoria vai oporto-se à maioria e legislar por imposiçāo. As pessoas sāo livres e deviam ser livres de decidirem fazer com a vida o que bem lhes apetece e ninguem tem nada a legislar sobre o assunto, ate ao limite em que isso interfere com o outro, naquilo que respeita ao governo e administracao do bem geral. A maioria, nesta discussoes,e perdedora por definicao porque tem sempre medo de ser considerada contraria a evolucao social na direccao entendida pela minoria. Hoje em dia o entendimento de que e preciso proteger as minorias leva a confundir proteccao dos direitos a idiossincrasia da minoria com a obrigatoriedade de sujeitar a maioria a incorporar como lei o pensamento da minoria para com isso perder a sua identidade maioritaria e, consequentemente, poder. Trata-se apenas de tactica politica e lobby para alargar e aumentar poder e fazer com que a maioria se convert a em minoria. Nao tem nada de civilazional.
  • Rodrigo Castro
    30 jan, 2016 Maia 14:11
    Cara Graça Franco, acha mesmo que alguém em sofrimento profundo, sem qualquer mobilidade, totalmente dependente não pode ter o o direito a decidir sobre o seu próprio destino? Não será mais egoista deixar alguém sofrer por convicções religiosas? E se esse alguém não acreditar no seu Deus? Vai obriga-lo a sofrer por convicções e fé alheias?
  • António Costa
    30 jan, 2016 Cacém 05:36
    Resumindo, não se pode sofrer, nem ter contrariedades, pois só temos direitos, deveres nunca! ...Depois, vem a "cultura" da droga, em que enquanto os efeitos da mesma duram, "está-se no paraíso". E por fim, vem o Fim. Uma ideologia que coloca o individuo como "escravo do sistema", onde apenas se obedece e cumpre ordens. Uma ideologia em que a única glória é morrer pelo Califa, para que este se mantenha no poder! Uma Lei Física muito importante: uma ação gera uma reação igual mas de sinal contrário. A total Liberdade sem respeito pelo Outro, gera a total Repressão da Liberdade sem qualquer respeito pelo Outro.