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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Bodo aos pobres

20 out, 2015 • Opinião de Graça Franco


Costa ainda não nos deu garantias de que o seu último móbil não se resuma ao seu mais estrito interesse pessoal.

Pode um programa social-democrata moderado e compatível com o cumprimento das regras do Tratado Orçamental, apto a servir de base de trabalho a qualquer programa de centro-esquerda ou de centro-direita, como o que foi apresentado a eleições pelo Partido Socialista, acabar desvirtuado numa espécie de bodo aos pobres populista/despesista? Pode.

Basta engalaná-lo com uma ou duas medidas avulsas retiradas das cartilhas do Bloco e do PC, quais bolinhas de natal na árvore de uma eventual governação costista apoiada por uma frente parlamentar da esquerda radical.

Exemplo: o descongelamento imediato das pensões acima das “mínimas das mínimas” que, logo no primeiro ano, custará qualquer coisa como mil e 600 milhões. Ou, em alternativa, amputar-lhe, por omissão, uma ou duas das suas traves mestras essenciais (e o despedimento conciliatório é, infelizmente, uma delas). Razão tinha Trigo Pereira e Mário Centeno quando alertavam para a necessidade de ler o programa socialista como um todo sem isolar nenhuma das suas partes.

Pior: meio ano de governação errática e radicalizada à esquerda é muito pouco tempo para que a factura do disparate se torne evidente (embora em rigor o país pareça estar mais vulnerável a qualquer devaneio do que a própria maioria julga, ou pelo menos nos tenta levar a julgar…), mas será tempo mais do que suficiente para capturar o voto de uma série de corporações e alargar a base social de apoio de um líder que joga aí a sua sobrevivência política e partidária.

A Costa não bastará chegar ao poder, depois de perder escandalosamente as eleições, precisará ainda de se agarrar a ele a todo o custo, mostrando-se capaz de ganhar o próximo acto eleitoral, conseguindo nas urnas a legitimidade moral que agora lhe falta.

Se Costa conseguir formar Governo com base num acordo de “mínimos” com o Bloco e o PC (o chamado acordo de incidência parlamentar capaz de deixar passar o programa do Governo, mas resumido ao Orçamento para 2016) pode bem chegar a Setembro (já com novo Presidente em Belém capaz de convocar novas eleições…) a braços com uma mais do que provável crise política, suscitada pelos seus parceiros de esquerda radical, mas isso que só pode ser péssimo para o país não será necessariamente mau para ele.

Basta chegar lá em condições de ganhar eventuais eleições com maioria absoluta, livrando-se então dos seus companheiros de caminho.

Costa não podia ter feito uma jogada mais desleal na conquista da liderança socialista mas a verdade é que saiu do congresso do partido com quase 70%. Pode apostar agora em repetir o gesto. A estratégia será sempre arriscada, mas Costa, que está neste momento “perdido por cem”, será quem menos arrisca em ver-se de futuro “perdido por mil”.

Há uma boa parte da população a votar com a carteira e, entre pensionistas, funcionários públicos, desempregados e uma multidão crescente de pobres e marginalizados sedentos de ajudas várias, cria-se uma vasta e potencial base social de apoio capaz de ser seduzida por benefícios imediatos, mesmo que efémeros. Além disso, a política de estímulo à procura terá evidentes efeitos de crescimento já perfeitamente visíveis a partir do Verão.

Não está em causa a justeza de muitas medidas do cardápio socialista, mais ou menos populares, está apenas em causa o ritmo e o grau em que elas se mostram ajustadas à saída gradual da austeridade e se tornarão possíveis. Acelerar excessivamente esse ritmo ou exagerar demasiado no grau, além de imprudente, pode colocar em risco a estabilidade macroeconómica futura, sendo desta forma contrárias ao interesse nacional. Mas Costa ainda não nos deu garantias de que o seu último móbil não se resuma ao seu mais estrito interesse pessoal.

Cavaco, com a sua costela de economista, conhece bem o risco associado a uma deriva populista/despesista de governação à esquerda e resistirá por isso, sem dúvida, e o mais que puder a avalizar um eventual governo frentista, por mais constitucional e legalista que este se apresente. Na pior das hipóteses, o Presidente tentará ganhar tempo, reduzindo o seu tempo de vida expectável à menor duração possível.

Costa também sabe que corre contra o tempo e por isso tentará garantir, ao contrário, tão cedo quanto possível, que o Presidente não possa ter o menor pretexto para não lhe passar para as mãos o poder. Isto é, logo que o Governo de coligação seja formalmente apeado pelo Parlamento, através de uma conveniente moção de rejeição que ponha legalmente fim à sua quase certa curtíssima vida em funções.

O líder socialista sabe que a rejeição do programa do Governo de coligação só poderá ocorrer depois de o PS ter, na mão, a garantia de um acordo tão abrangente e estável, que se sobreponha às vantagens de uma eventual permanência em funções de um governo limitado aos poderes de gestão, mesmo que esse acordo (à esquerda) se faça ao arrepio do programa eleitoral original socialista, com cedências mais ou menos folclóricas ou concedidas a eito.

Claro que há dentro do PS muita gente (como Vera Jardim sistematicamente tem demonstrado aos microfones aqui da Renascença) que não vê qualquer possibilidade coerente de levar por diante um acordo sério com bloquistas e comunistas, mas estas vozes não são maioritárias na nova bancada socialista. O cheiro a poder é motivo suficiente para muito contorcionismo político. Além disso, está por provar que a maioria da bancada estivesse confortável com a moderação do programa Centeno. A deriva esquerdista começa logo na ala galambista da bancada parlamentar.

Daí a ironia. Nunca provavelmente foi tão fácil aproximar programas (entre PS, CDS e PSD e a ordem aqui não é sequer arbitrária) e não fosse a inábil gestão das primeiras 72 horas pós-eleitorais por parte da Presidência da República e dos parceiros de coligação e o panorama que se colocava ao país poderia ser hoje bem diferente.

PSD e PP em vez de correrem para os braços um do outro na assinatura de um acordo de Governo, cujo futuro já sabiam votado ao fracasso, deveriam ter aberto de imediato a porta à governação a três, iniciando uma negociação aberta e empenhada, puxando o PS de forma consistente e comprometida para dentro do clássico arco da governação.

Ontem já foi tarde para Portas ceder a vice-presidência a António Costa. Porque raio o líder que recusou que as suas medidas mais emblemáticas fossem “enfeitar” a árvore de governação da direita aceitaria agora fazer de ajudante de Pai Natal? Sobretudo quando se vê a poucos dias de aspirar a ser ele o gestor último do magro saco dos presentes?

Aparentemente a coligação viu o filme tarde demais. Dizer agora ao PS que a porta do Governo está aberta ou que Portas está disposto a ceder-lhe o lugar de vice-primeiro ministro soa demasiado a falso. Há muita razão quando se diz que o pecado da soberba é o único capaz de persistir para além da morte.

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