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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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A odisseia do pobre

26 abr, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


A pobreza tem de voltar a ser a grande lente política, moral e até literária. Podemos e devemos reencontrar essa lente nos clássicos.

Quando comparamos o século XXI com o século XX, uma das grandes mudanças, talvez a maior, está na desvalorização da pobreza. De repente, em menos de uma geração, a pobreza e a figura do “pobre” deixaram de estar no centro das narrativas políticas e até artísticas do Ocidente. De repente, as divisões e identidades étnicas e sexuais passaram a ser mais importantes do que a pobreza. É um equívoco moral e político. Quando uma pessoa é gay, negra e pobre, a sua principal identidade é a pobreza. A sua cor de pele e orientação sexual são secundárias perante a sua luta diária pela sobrevivência. O resultado desta miopia com dezanove anos está à vista de todos: emergência de populismos e nacionalismos alimentados pelos tais pobres, figuras esquecidas e ressentidas.

A pobreza tem de voltar a ser a grande lente política, moral e até literária. Podemos e devemos reencontrar essa lente nos clássicos. Encontramo-la no Evangelho, que nos desperta para a caridade. Encontramo-la na “Política” de Aristóteles, que nos alerta para a impossibilidade que é construir um regime decente em cima de uma excessiva assimetria económica; ou seja, nenhuma república sobrevive a uma sociedade marcada pelo ressentimento dos mais pobres e pelo snobismo dos mais ricos. Até encontramos essa lente esquecida nas sagas de Homero.

A “Odisseia”, por exemplo, retrata os mais pobres com tons luminosos. São os humildes que não se vendem, são os humildes que mantêm Ítaca moralmente de pé. Homero tem particular devoção pelas amas, fieis depositárias da moral. E, à semelhança do imaginário do Evangelho, Homero coloca a bondade no seio de pastores desprezados. Um porqueiro (Eumeu) e um boieiro (Filécio) são aliados fundamentais de Ulisses e, acima de tudo, são retratados como homens justos e firmes, por oposição aos poderosos e ricos da corte. Se Jesus nasce junto de pastores, Ulisses renasce junto de pastores enquanto "mendigo imundo e enjeitado”.

Nada disto quer dizer que o pobre é por inerência bom ou que a pobreza é o caminho da santidade. O meu ponto é outro: um pensamento público ou político só é ético se tiver em mente a pobreza. Os caminhos para a diminuição da pobreza variam. A esquerda tem um caminho, a direita tem outro; os crentes têm um caminho, os não crentes têm outro. Mas todos os caminhos têm de partir do mesmo ponto de partida: a odisseia do pobre.

Comentários
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  • Vera Costa
    27 abr, 2019 19:13
    "A Odisseia do Pobre" A guerra de Tróia durou dez anos, mas foi mais motivada pelas maluqueiras da Helena de Tróia! isso deu 'asas' a que os gregos lutassem com os troianos, porque eles já andavam em desavenças por causa dos territórios! Agora nós: os pobres andam em desavenças com os ricos! as religiões cristãs não são todas católicas! as que são católicas, são mais a favor dos mais pobres e estão a sofrer mais ameaças do que as outras religiões! Não está a insinuar que devíamos ter um 'Odisseu' para persuadir um pobre 'Aquiles' a lutar, com a ideia de enfiar os mais pobres e os católicos, todos, num cavalo de pau e Oferecer à Caixa Nacional de Pensões? até que nem era mal pensado! mas só um cavalo não dava! só se fossem dois! então metiam-se num dos cavalos, os católicos todos, para a Assembleia da República, para lutarem espiritualmente! e os outros no outro cavalo, para lutarem com o Ministro Vieira da Silva, porque tem ar de quem pensa muito, mas não sai nada! Comparando esta história, com a 'Odisseia de Homero' deixávamos os ricos a roubarem as 'Helenas aos Menelaus' e a fugirem todos para as ilhas Desertas dos Açores! e pagarem taxas e impostos, por estarem em território português! Bom fim de semana, Henrique Raposo! [ Renascença, Let me pass, please!!!