26 abr, 2019
Quando comparamos o século XXI com o século XX, uma das grandes mudanças, talvez a maior, está na desvalorização da pobreza. De repente, em menos de uma geração, a pobreza e a figura do “pobre” deixaram de estar no centro das narrativas políticas e até artísticas do Ocidente. De repente, as divisões e identidades étnicas e sexuais passaram a ser mais importantes do que a pobreza. É um equívoco moral e político. Quando uma pessoa é gay, negra e pobre, a sua principal identidade é a pobreza. A sua cor de pele e orientação sexual são secundárias perante a sua luta diária pela sobrevivência. O resultado desta miopia com dezanove anos está à vista de todos: emergência de populismos e nacionalismos alimentados pelos tais pobres, figuras esquecidas e ressentidas.
A pobreza tem de voltar a ser a grande lente política, moral e até literária. Podemos e devemos reencontrar essa lente nos clássicos. Encontramo-la no Evangelho, que nos desperta para a caridade. Encontramo-la na “Política” de Aristóteles, que nos alerta para a impossibilidade que é construir um regime decente em cima de uma excessiva assimetria económica; ou seja, nenhuma república sobrevive a uma sociedade marcada pelo ressentimento dos mais pobres e pelo snobismo dos mais ricos. Até encontramos essa lente esquecida nas sagas de Homero.
A “Odisseia”, por exemplo, retrata os mais pobres com tons luminosos. São os humildes que não se vendem, são os humildes que mantêm Ítaca moralmente de pé. Homero tem particular devoção pelas amas, fieis depositárias da moral. E, à semelhança do imaginário do Evangelho, Homero coloca a bondade no seio de pastores desprezados. Um porqueiro (Eumeu) e um boieiro (Filécio) são aliados fundamentais de Ulisses e, acima de tudo, são retratados como homens justos e firmes, por oposição aos poderosos e ricos da corte. Se Jesus nasce junto de pastores, Ulisses renasce junto de pastores enquanto "mendigo imundo e enjeitado”.
Nada disto quer dizer que o pobre é por inerência bom ou que a pobreza é o caminho da santidade. O meu ponto é outro: um pensamento público ou político só é ético se tiver em mente a pobreza. Os caminhos para a diminuição da pobreza variam. A esquerda tem um caminho, a direita tem outro; os crentes têm um caminho, os não crentes têm outro. Mas todos os caminhos têm de partir do mesmo ponto de partida: a odisseia do pobre.