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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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"Notre Drame"

17 abr, 2019 • Opinião de José Miguel Sardica


A dimensão espiritual e simbólica do que desapareceu não é materialmente reconstituível. É essa a perda que ficará.

Há muita coisa de trágico, de simbólico e de icónico no incêndio (mesmo que parcial, felizmente), da Catedral de Notre-Dame, em Paris, anteontem. O acidente - parece não haver razões para desconfiar de que se tratou de um ato premeditado, semelhante aos ataques que igrejas em França têm sofrido nos últimos tempos - é uma tragédia inominável. A Notre-Dame é uma das mais importantes igrejas-monumentos de Paris, de toda a França, da Europa e do mundo. Fotografada, não precisa de legenda para identificação; por isso é capa de inúmeros guias turísticos, álbuns de arte e livros de história. Mesmo sem a cobertura e a céu aberto, como ficou, ferida pelas chamas, é um extraordinário exemplar da arquitetura gótica e um repositório de mais de oito séculos de história da França.

O pináculo de Violet-le-Duc, que encimava o altar-mor, ruiu, e as imagens do interior mostram o estado calcinado das abóbadas, as pedras enegrecidas e o interior chamuscado ou ensopado. Felizmente, o tesouro ficou a salvo, com peças inigualáveis, como a coroa de espinhos de Cristo ou a túnica de São Luís. Mas a Catedral era mais do que um local de culto católico. Na muito secularizada França, foi palco de acontecimentos e evocações políticas cruciais para a memória e identidade do país, como a coroação imperial de Napoleão Bonaparte, em 1804, a beatificação de Joana d’Arc, em 1909, ou a celebração da reconquista de Paris aos nazis, em 1944. Era, e é, tanto um coração da Cristandade, como durante séculos se dizia, como um altar da Pátria - até mesmo um cenário de literatura universal, graças a Víctor Hugo e ao seu imorredouro "Corcunda de Notre-Dame". Era, e é, o coração da Île de la Cité, o berço medieval da cidade de Paris, o original vivo das muitas estampas e postais que enchem as bancas dos “bouquinistes” (alfarrabistas) das margens do Sena.

As imagens aéreas de drone na noite de segunda-feira mostravam a cobertura em chamas, como uma gigantesca cruz (a nave central e as laterais do altar) em braseiro vermelho, no momento em que o mundo cristão iniciava a Semana Santa, com a preparação para o Tríduo Pascal, da morte e ressurreição de Cristo. Dir-se-ia que o grande templo mariano parisiense fez antecipar e reviver, em si e no seu sacrifício, o martírio pascal que ali já não pode ser celebrado neste próximo fim-de-semana. A tragédia não deveria ter acontecido, e é preciso perceber como numa obra de restauro de grandes dimensões, ali em curso há meses, houve incúria, ou não havia uma equipa antifogo em prevenção permanente para acudir a algum imprevisto. Mas aconteceu - em Paris, uma das grandes capitais e símbolos da civilização e da identidade europeias (hoje tão maltratadas), no princípio da Semana Santa.

É possível fazer ressuscitar a icónica Catedral? Sem dúvida. Do ponto de vista material, que será o mais fácil, basta haver vontade, dinheiro e uma equipa de arquitetos que (ainda) perceba o que é uma construção gótica. Emmanuel Macron já o anunciou e não há dúvida de que os franceses se mobilizarão para o efeito. Ninguém contestará que é necessário reerguer a Notre-Dame, e essa causa nacional poderá até servir de “rassemblement” moderador das fissuras sociais que têm percorrido a grande nação francesa. A nova igreja, contudo, terá para sempre perdido a “patine” do tempo e da história. A dimensão espiritual e simbólica do que desapareceu não é materialmente reconstituível. É essa a perda que ficará. Talvez por isso, o "Libération" de ontem titulava a sua primeira página com o angustiado e melancólico título (trocadilho) de… "Notre Drame”. De facto, tratou-se de um “drama” para todos nós.

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