03 abr, 2019
A evolução dos preços de medicamentos, das intervenções médicas e dos métodos de diagnóstico tem colocado importantes desafios, quer ao nível dos potenciais ganhos na saúde quer ao nível da crescente escalada dos seus custos. A estas questões acresce o facto de a população portuguesa envelhecer menos saudável que a maioria dos países do espaço europeu e, ainda, a situação de termos cada vez mais uma população ativa e jovem com problemas como diabetes, obesidade que resultarão em acréscimos significativos nos custos com a sua saúde. Neste cenário, teremos as maiores dificuldades em antever um futuro para a saúde em Portugal.
Partindo da premissa que queremos que os velhos vivam mais tempo e que não antevemos, nem desejámos, que o progresso científico desacelere, torna-se imperativo ser criativo nas soluções; assim, (1) investir na prevenção eficaz, utilizando modelos de saúde pública que permitam combater alguns dos flagelos que afetam os futuros velhos, que tanto quanto se antecipa vão ficar doentes mesmo antes de serem velhos, e (2) envolver os profissionais de saúde, os investigadores e a sociedade em diretrizes que permitam delinear prioridades e identificar problemas associados ao uso indevido dos recursos - situação, sem dúvida, da maior pertinência.
A dimensão desta problemática, o debate sobre os custos dos medicamentos, as restrições à prescrição e a discussão sobre própria sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), intensificou-se recentemente no seio da profissão médica e no debate público, tornando ainda mais premente a necessidade de propor um modelo de decisão, baseado no princípio da justiça que permita, em última análise, a salvaguarda da dignidade de quem é tratado e de quem trata.
A Lei de Bases da Saúde, tanto na forma como no conteúdo, não cumpre estes objetivos. Mais grave, no entanto, é usar esta lei como arma de arremesso político acentuando fraturas entre público e privado que, verdadeiramente, em nada contribuem para garantir o que deverá ser o melhor interesse de todos; cuidados de saúde centrados nas pessoas.
Enquanto assistimos a estes debates ditos “fraturantes”, com ideologia política evidente, a verdade é que as pessoas doentes continuam a esperar e a desesperar que alguém, não interessa nada quem, as ajude... E esse sim deverá ser o objetivo de uma Lei de Bases da Saúde!
O nosso compromisso, e por maioria de razão de todos os que têm responsabilidades políticas, administrativas e clínicas na área da saúde, não é com o SNS, mas sim com todos e cada um dos doentes. Desta forma, salvar o SNS “à custa” dos doentes, é eticamente inaceitável e representa, em meu entender, um conflito de interesse grave. Todos os que têm responsabilidades no sector de saúde devem assumir que o seu interesse primário, ou seja o que deve presidir a todas as decisões, é o melhor interesse do doente, assim, quando por qualquer razão o melhor interesse (ter uma consulta em tempo útil, fazer uma cirurgia) não pode ser atendido num período de tempo razoável (e aqui mais uma vez o calendário deverá ter em atenção que o tempo aceitável para o doente, porque vulnerável, pode ser divergir do tempo aceitável do ponto de vista clínico), a responsabilidade é encontrar soluções que cumpram este desiderato. Deste modo, usar argumentos políticos, interesse secundário, para não atender aquilo que tem que ser o interesse primário – o melhor interesse do doente – é ético-deontologicamente inaceitável.
Assim, considerando as questões de crescente dificuldade de acesso (pelo menos em tempo útil) aos serviços prestados pelo SNS e às dificuldades por todos conhecidos e, infelizmente, por muitos sentidas, que impactam de forma evidente na possibilidade de assegurar a proteção da saúde das pessoas e das comunidades, esta lei é, no mínimo, manifestamente insuficiente.
*Ana Sofia Carvalho, Professora do Instituto de Bioética