20 mar, 2019
Em 1944, a caminho do fim da Segunda Guerra Mundial, Hitler deu ordens ao alto-comando nazi que ainda ocupava Paris para que a capital francesa fosse incendiada, em rigor, para que os seus pontos-chave (como a Torre Eiffel) fossem dinamitados, de maneira a que a “libertação”, a ocorrer, apenas devolvesse aos parisienses ruínas.
O plano, felizmente, gorou-se; mas queimar Paris parece ser uma tentação e uma catástrofe histórica recorrentes. Em 1792, os jacobinos deitaram fogo às Tulherias; em 1871, a Comuna fez o mesmo ao Hôtel de Ville (a Câmara Municipal). Durante as duas Guerras Mundiais, os bombardeamentos massacraram a cidade; e no maio de 1968, o radicalismo estudantil varreu parte de Paris com uma “intifada” de pedras, barricadas, montras partidas e automóveis incendiados. Desde há 18 semanas consecutivas – e sem sinais de futuro abrandamento – os sábados à tarde nos Campos Elísios oferecem a pouco saudável “diversão” das manifestações dos “coletes amarelos”.
No passado fim de semana, foram cerca de 10 mil manifestantes, entre os quais o Ministério do Interior estima que tenha havido infiltração de mais de um milhar de extremistas ultraviolentos. Politizada ou inorgânica, com cabecilhas ou espontaneidade, a marcha saldou-se por 11 feridos, uma centena de detidos e uma dezena de lojas ou quiosques vandalizados e incendiados – com realce para o aristocrático restaurante Fouquet’s, pilhado por populares aos gritos de “morte aos ricos”. Emmanuel Macron andou a peregrinar por França, tentando dialogar com os concidadãos, descendo ao povo que o elegeu Presidente. Mas o “peuple français” deu em não gostar do aprumo milionário presidencial e da sua alegada política para ricos. Resultado: as marchas dos “coletes amarelos” já são “ataques à República” e o governo acaba de aprovar uma lei “anti-casseur”, ou seja, contra os desordeiros que partem tudo o que encontram pela frente.
Cada país tem os seus problemas e os seus protestantes. Há-os em Paris e em Bruxelas, em Londres e em Madrid, e por toda a Europa se sente, com maior ou menor expressão, um descontentamento surdo e larvar, com crescentes sinais de justicialismo e de militância antissistema. As democracias gemem sob uma crescente tenaz que a testa e a exaure, e cujas extremidades são ocupadas tanto pela extrema-esquerda como pela extrema-direita. A primeira expressa uma espécie de “internacional” dos excluídos do progresso, aflitos pela diminuição do nível de vida, pelo desemprego, pelos salários congelados, pelos impostos e pela inflação. A segunda, que também cavalga estas bandeiras, soma a isto um discurso de autodefesa, que é de ódio contra o “outro”, o estrangeiro, o migrante, o que vem para partilhar o que a democracia e a liberdade ainda oferecem a quem tem a bênção de viver nelas.
Fora da Europa, há protestos no Brasil, onde a esquerda ressente Bolsonaro, ou na Venezuela, onde quem não é de esquerda já não quer Maduro. Nos EUA, os discursos dos muros e os “hate speeches” das redes sociais fomentam supremacistas brancos, do género do atirador solitário e louco que perpetrou, há dias, o atentado islamofóbico na Nova Zelândia, um dos lugares mais pacíficos do mundo. Por todo o globo, os tempos são de incerteza e os radicalismos espreitam oportunidade para golpearem democracias cansadas. No velho continente, haverá eleições europeias em maio. Muitos sinais indicam que elas serão, e pelas piores razões, decisivas para o futuro da Europa – e por isso também para Portugal, onde ainda vamos podendo (até quando?) apregoar o milagre de sermos um “oásis” de paz num mundo em “guerra”.