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Ana Sofia Carvalho
Opinião de Ana Sofia Carvalho
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Algumas encruzilhadas a propósito do Dia do Pai

19 mar, 2019 • Opinião de Ana Sofia Carvalho


Ter um filho é sempre uma aventura. O constante progresso científico, as revoluções tecnológicas e o cada vez mais aprofundado conhecimento dos fenómenos biológicos essenciais à vida fazem questionar crenças, valores e comportamentos morais institucionalizados, que alguns julgavam imutáveis.

Ter um filho é sempre uma aventura: será rapaz ou rapariga? Será moreno ou loiro? Será grande ou pequeno? Terá doenças hereditárias? Sofrerá de problemas de saúde ou será saudável?

Nas décadas mais recentes, esta imprevisibilidade alterou-se. O constante progresso científico, as revoluções tecnológicas e o cada vez mais aprofundado conhecimento dos fenómenos biológicos essenciais à vida fazem questionar crenças, valores e comportamentos morais institucionalizados que alguns julgariam imutáveis*.

A dissociação entre sexualidade e procriação permitiu um feito notável, traduzido pelo nascimento de centenas de milhares de seres humanos concebidos através das técnicas de procriação medicamente assistida (PMA). Acresce que, graças às novas potencialidades técnicas, passam a estar à disposição dos médicos e dos cientistas materiais biológicos outrora inacessíveis à escalpelização laboratorial e que poderão ser objeto de manipulações de índole muito variada.

De facto, na PMA a futura criança torna-se inevitavelmente objeto de decisões: sobre o ambiente procriativo – determinação de critérios, seleção, rejeição, decisões sobre o seu ambiente gestacional –, determinação acerca de como e quem vai levar a cabo a gestação e decisões sobre o seu ambiente familiar e tipo de estrutura familiar que terá.

Nesta área, duas situações se afiguram, pela atualidade e eticidade, que são de debate obrigatório; a Procriação Medicamente Assistida (PMA) com recurso a gâmetas doados (óvulos ou esperma) e a gestação de substituição (que, pela sua complexidade, será objeto de um próximo artigo).

A PMA com recurso a gâmetas de dador merece particular atenção, quer por se tratar de uma prática utilizada em diversos países, incluindo Portugal, quer pelos problemas que lhe estão subjacentes. É de notar que a formulação «PMA com recurso a gâmetas de dador» não se limita só à dádiva de esperma, mas inclui, quer através do recurso a ovócitos frescos, quer, mais recentemente, com o sucesso da vitrificação de ovócitos, a utilização de gâmetas femininos criopreservados muitas vezes obtidos a preços e em condições pouco éticas. Tal viola o princípio consagrado na declaração de biomedicina do Conselho da Europa, que considera que o corpo humano e as suas partes não devem, enquanto tal, ser fonte de lucro.

Recentemente em Portugal, e tal como sublinhado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida em 2016, aquando da aprovação da lei, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional o uso anónimo dos gâmetas doados. Ou seja, prevendo a possibilidade de conhecimento da identidade do dador.

Assim, várias questões de crucial importância estão atualmente em discussão; (1) deve ou não esta decisão ter efeitos retroativos? Se sim, como procederemos com os dadores que se recusam a levantar o anonimato? O que diremos às famílias que escolheram esta opção com regras que, eventualmente, agora mudam? O que fazer com os embriões já criados e criopreservados com recurso a gâmetas doados e que, não sendo de doador anónimo, nem o dador nem os pais aceitam que sejam transferidos? (2) não sendo retroativa, podemos aceitar que crianças nascidas através do recurso à mesma técnica tenham distintos direitos constitucionalmente consagrados? Como iremos sensibilizar os dadores e os futuros pais para a responsabilidade de garantirem o cumprimento deste direito?

Enfim…não há soluções perfeitas. Como poderemos encontrar uma solução que proteja os diferentes direitos em conflito: (1) o (a) dador(a); (2) os casais que recorreram à PMA com recurso a um gâmeta doado; (3) as crianças já nascidas com recurso a gâmetas doados; os embrões criopreservados com gâmeta de dador; (4) as crianças e os embriões do futuro…Difícil tarefa!

De facto, quando usamos o jargão do “avanço civilizacional” para justificar a aprovação de tudo não posso deixar de lembrar a afirmação de Leonard Read sobre as "elites políticas” que: (1) inventam desejos; (2) convencem as pessoas que esses desejos são seus; (3) persuadem no sentido de que, afinal, estes desejos são, efetivamente, direitos e, (4) assumem o papel de guardiões destes direitos… Depois, bem, não sendo possível salvaguardar o melhor interesse de todos os que transformamos os desejos em direitos, teremos que escolher.

Atualmente, a questão central incide sobre os limites da autonomia reprodutiva, ou seja, sobre os limites da liberdade reprodutiva. Apesar de a tomada de decisão autónoma dever ser sempre uma prioridade, há questões éticas subjacentes que devem ser equacionadas. É comum recorrer-se ao conceito de autonomia para justificar a tradução do desejo de ter um filho como o direito a procriar, o que se revela falacioso, pois a autonomia só é eticamente aceitável quando é aplicada ao próprio ou com base no respeito pelo Outro, mas nunca como um direito ao Outro, neste caso, como um direito ao filho a procriar.

De facto, a autonomia só é possível através das responsabilidades que emanam das relações com os outros. Deste modo, no nosso entender, a proteção da criança deverá ser sempre a prioridade, mesmo que tal atitude interfira na liberdade parental. Em termos éticos, a autonomia reprodutiva do casal está, de facto, inevitavelmente ligada à vontade de os pais assumirem a sua responsabilidade parental, o que implica responder à e pela criança, antes e depois do nascimento.

Considerar as especificidades da criança é parte da responsabilidade parental, pela qual os pais têm o dever de evitar as condutas que possam causar danos à integridade da criança. Do ponto de vista ético, esta posição não coloca limites intoleráveis à autonomia parental, mas revela, pelo contrário, os pré-requisitos para o exercício da responsabilidade parental, segundo a qual a criança deve ser respeitada e protegida de eventuais danos. Saibamos, pois, ser PAIS.

*Parte deste artigo foi originalmente publicado no livro publicado pela Universidade Católica Editora: Família: essência e multidisciplinariedade coordenado por Helena Rebelo Pinto e José Miguel Sardica em co-autoria com Joana Araújo e Margarida Silvestre

Comentários
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  • Patricio
    19 mar, 2019 lisboa 17:10
    Em relação a estes desafios em q vai ser possível selecionar e modificar a composição genética e a possibilidade de uniões entre meios ou triplos irmaos ,impões-se q cada cidadão tenha o seu ADN identificado e verificar se uma relação é incestuosa ou não.Ou seja código genético obrigatório asiim como o BI ou cartao de cidadão.Pode inclusive um pai casar com uma filha.O registo identidade genetica iria permitir o anonimato dos dadores e outras situações mais embaraçosa.Fica caro mas tem mais ética.A genética vai alterar a evolução do HOMEM ,aparecerão os super homens todos produtos de manipulação genética q tenderá a generalizar-se o futuro trará muitas surpresas e já não há amarras que parem estes processos.
  • Céptico
    19 mar, 2019 Porto 14:32
    Ó...