01 mar, 2019
Ordenação de mulheres. Os sectores ditos tradicionalistas gritam contra a ideia, alegando a imutabilidade da igreja. Esquecem um pormenor: a igreja não é Deus; Deus é imutável, a igreja não. A igreja é uma pedra, sim, mas é uma pedra rolante, que vai rolando ao longo da história num compasso lento. É lenta, mas muda. Se a memória não me falha, o celibato só foi imposto como obrigatório no século XII. A igreja que aparece nos livros de Dante não é a mesma que a nossa. A igreja é uma estrutura humana, não é Deus. O direito canónico não é a voz de Deus, é uma negociação entre uma estrutura de homens e o Evangelho.
Os sectores que reagem a qualquer mudança dizem ainda que a ordenação de mulheres não foi ordenada por Jesus no Evangelho. Pois bem: Jesus também não contestou a escravatura. Jesus também não ordenou o celibato. De resto, o celibato não tem validade bíblica. Ou melhor, pode ser feito um argumento bíblico a favor do celibato, mas não existe uma ordem expressa para o celibato. Ademais, a vivência dos Doze é normal. Pedro e os outros têm mulheres e sogras. Eram pastores no sentido moral do termo, não padres. O que é conservar o essencial? Uma regra eclesiástica da idade média ou a essência bíblica?
Do ponto de vista bíblico, faz mais sentido defender a ordenação de mulheres do que impor o celibato aos seguidores. Não existem referências à obrigatoriedade do celibato, existem inúmeras passagens que colocam a mulher no centro. Se repararem, Jesus dá sempre razão às mulheres que aparecem. No Evangelho, a norma parece ser esta: a mulher tem sempre razão contra homens, contra fariseus, contra multidões. A mulher, que surge sempre a partir da obscuridade doméstica, é iluminada por Jesus naqueles momentos públicos. A mulher invisível ganha através de Jesus uma luz que os doutores da lei não têm. Depois, no momento decisivo na cruz, são elas que não desistem, são sobretudo elas que ficam. Quando José de Arimateia coloca o corpo do Senhor no sepulcro, são elas que vêem, são elas que reportam. Eles não estão, fugiram. Maria, Madalena e Salomé ficam e observam na hora mais difícil.
“Maria de Magdala e Maria, mãe de José, observaram onde o depositaram. Passado o sábado, Maria de Magdala, Maria, mãe de Tiago, e Salomé comprara perfumes para ir embalsamá-lo” (Mc 15, 47; Mc 16, 1).
Em novo momento decisivo, Jesus aparece pela primeira vez a uma mulher, Maria Madalena. “Disse-lhe Jesus, Maria! Ela aproximando-se, exclamou em hebraico, Rabbuni - que quer dizer Mestre” (Jo 20, 16). O curioso é que, a seguir, os onze não querem acreditar em Madalena. Ela é uma mulher e, portanto, desprezam o anúncio por ela feito, Ele ressuscitou. Além disso, estão com medo e recusam ouvir a boa nova. Madalena é o novo Caleb e os onze são como as tribos que recusaram acreditar na terra prometida. No momento decisivo, são as mulheres que não desistem. São eles que reúnem as tropas.
O Evangelho não é o Alcorão, não é um conjunto de alíneas obrigatórias. No Evangelho, nem Jesus nem São Paulo negam a escravatura. Quer isto dizer que não devemos condenar a escravatura? Claro que não. A cristandade, porém, demorou mais de milénio e meio até começar a debater a fundo a escravatura, que, como se sabe, só foi ilegalizada no século XIX, mil e novecentos anos depois da semente deixada por São Paulo:
“Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28)
Não há escravo nem livre. Não há homem e mulher. Lá chegaremos. A pedra é rolante.