Emissão Renascença | Ouvir Online
Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
A+ / A-

Nem ateu nem fariseu

Pedro tinha sogra

22 fev, 2019 • Opinião de Henrique Raposo


Um padre que cede através da pedofilia é alguém em queda. É por isso que importa discutir o celibato, e não a homossexualidade.

Custa ouvir membros do clero a estabelecer uma relação causa/efeito entre homossexualidade e pedofilia. Lamento, mas a homossexualidade é aqui uma irrelevância. A maioria dos casos de pedofilia é praticada por homens heterossexuais. São os pais, padrastos, tios, irmãos, primos e vizinhos que abusam das próprias filhas e filhos, sobrinhas e sobrinhos, vizinhas e vizinhos, primas e primos. O problema deles não é a orientação sexual, hetero ou gay, mas a própria condição masculina: gay ou hetero, o homem é o abusador sexual por excelência, cometendo cerca de 98% dos casos de agressão. É por isso que insisto num ponto: o caminho da igreja tem de passar por um papel mais alargado das mulheres; a mulher, seja qual for o seu cargo, tem de estar mais presente na vida das instituições da igreja.

A raiz do mal não é a orientação sexual, mas sim a impunidade do poder. Para pensar o assunto, seria bom que a igreja voltasse à pêra de Santo Agostinho. Em “Confissões”, quando recorda o seu passado de pecado, Agostinho invoca o episódio da pêra: diz que sentiu prazer quando roubou uma pêra de um quintal sem ser visto ou apanhado. A pêra de Agostinho é assim uma variação simbólica da maçã de Adão e Eva. Aqui o mal não tem mistério: Agostinho sentiu o prazer do mal, o prazer que é ficar impune, o prazer que é sentir que a nossa inteligência mecânica e amoral não se confronta com um sistema legal ou moral, o prazer que é dizer, Roubei mas não me apanham! É este o prazer lúdico do mal: o da invisibilidade, o de sermos invisíveis aos olhos da lei e aos olhos de Deus.

Voltamos, portanto, ao pecado original: a ideia de que o homem é tão poderoso e auto-referencial que se torna jogador e árbitro ao mesmo tempo; a ideia de que é o próprio sujeito que cria as regras morais que avaliam a sua conduta. Em "Confissões", é o jovem Agostinho que cria a paleta moral que avalia o jovem Agostinho. Neste circuito fechado, roubar não é um pecado, é um prazer.

A dimensão dos abusos dentro da Igreja só é compreensível à luz desta metáfora da pêra. Dentro da estrutura da igreja, o poder do padre e do bispo é (era?) demasiado grande, é (era?) um véu demasiado espesso que cria demasiados ângulos mortos, demasiados locais e situações onde a sua acção pode ceder à tentação. Não, não estou a dizer que todos os padres e bispos sentiram esta tentação – isso seria uma associação tão abusiva como aquela que tenta ligar homossexualidade e pedofilia. Estou a dizer, isso sim, que o clericalismo cria os cenários onde um determinado padre ou bispo pode de facto ceder à impunidade do poder.

Um padre que cede através da pedofilia é alguém em queda. É por isso que importa discutir o celibato, e não a homossexualidade. Com ou sem o problema da pedofilia, o fim da obrigatoriedade do celibato seria sempre um tema interessante. Com a questão da pedofilia em cima da mesa, é um tema obrigatório. Não acredito que o celibato seja a causa inicial da pedofilia, mas acredito que é um factor que potencia abusos e tentativas de aproximação indevidas. Ou seja, se ocorrer uma ignição do mal a montante, o rastilho é alimentado a jusante pelo celibato. É esta, de resto, a posição do padre Hans Zollner, responsável pela cimeira em curso: “a forma de vida celibatária torna-se num factor de risco quando a vida sacerdotal entra em crise”. Na Alemanha, a igreja percebeu que “a idade média do sacerdote que abusa pela primeira vez é de 39 anos”. Ou seja, a integridade moral dura bastantes anos e depois começa a desmoronar-se devido à solidão e ausência de laços afectivos além dos laços paroquiais. Em resposta, Zollner diz que são necessários mais testes preventivos no seminário. Com o devido respeito, julgo que isso não é resposta. Como é que se avalia aos quinze ou vinte anos a pressão de vinte anos de solidão cujo peso só se torna obviamente visível aos quarenta? Com o devido respeito, julgo que a resposta certa é acabar com o fim da obrigatoriedade do celibato. A igreja precisa de mudar e esse seria um sinal magnífico de mudança e de fidelidade bíblica. O celibato nada deve à Bíblia, nada.

Ironicamente, a igreja neste ponto ganhava em sair da grelha de Agostinho, pilar clássico da abstinência sexual e amorosa. Passar anos e anos sem sentir outro corpo humano é a negação da condição humana, passar uma vida sem uma relação de amor e partilha só pode ser um fardo e suportar esse fardo não é para todos. A obrigatoriedade do celibato não é para quem quer, é para quem pode. Existirão sempre corpos de elite dentro da Igreja que encararão o celibato com sentido de dever e amor por Deus. Mas a Igreja é a maior organização do mundo, será sempre composta por homens normais e não por heróis. E uma igreja feita por simples homens pecadores como Pedro só pode ser uma igreja de homens com o direito de casar, amar, formar família - como os apóstolos. É que até Pedro tinha sogra: "Entrando em casa de Pedro, Jesus viu que a sogra dele jazia no leito com febre" (Mt 8, 14).

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Helena Matos
    24 fev, 2019 coimbra 21:49
    Penso q Henrique Raposo se contradiz qdo defende q o fim do celibato poderá ser o fim dos abusos sobre crianças. Quem dera q assim fosse, a solução não estava longe! O problema é q, como o próprio articulista reconhece, grande parte dos crimes é cometido no seio familiar por homens (pais, avôs, tios e primos). E estes, na generalidade, são casados ou têm companheira. Não é com o fim do celibato que a Igreja irá pôr fim a este tipo de crimes. É com melhor formação humana e eclesiástica e, qdo se suspeita do crime. q haja denúncia e não encobrimento. Ninguém pode abusar de ninguém ponto! Nao deve ser sequer discutível a razao por que o faz. Não há razão para se abusar sexualmente de um menor ou de quem quer q seja. Ponto! E quem quer q o faça, padre, bispo ou cardeal, q seja julgado pelo Tribunal comum e lhe seja aplicada pena condizente.
  • Pe. José M. Pereira
    23 fev, 2019 Portela 16:39
    E bom debater o celibato, até para se o conhecer para além das considerações de que ele é só para heróis e o homem "normal" só pode superar a solidão no contacto dos corpos. Mas creio que é tão abusivo e infundado associar homossexualidade e pedofilia, como o é entre celibato e pedofilia: se a maioria dos abusadores são heterossexuais, também a maioria deles são casados ou solteiros com vida sexual activa, sem qualquer intenção ou compromisso de celibato. Por isso creio que não basta centrar a questão dos abusos por sacerdotes no clericalismo e na impunidade. É preciso juntar-lhe a sexualidade autorreferêncial (hétero ou homo). A solidão não é exclusivo dos celibatários. Nem se vence com simples união sexual. Quantos "activos sexuais" (casados, solteiros, divorciados ou viúvos), vivem habitual ou pontualmente profundas solidões? Não é por isso que ganharão mais facilmente inclinação para a pedofilia. O mesmo com os celibatários. A questão é quando a solidão e a degradação da vida espiritual ou do ardor inicial que presidiu à opção de vida (casamento, celibato, solteiro) levam a admitir práticas sexuais autorreferênciais, de mera autossatisfação, sem respeito pelo outro, nem pela significação profunda da sexualidade e da antropologia sexual. Se a isso se juntar a impunidade e o clericalismo, está aberto o caminho para possíveis abusos, crescentemente graves e inadmissíveis: instrumentalização (mesmo que mutuamente consentida), assédio, violação, pedofilia... Creio que só neste horizonte mais largo, sem afunilamento, se pode atacar a raíz deste mal.
  • Vera
    22 fev, 2019 Palmela 23:29
    "A obrigatoriedade do celibato não é para quem quer, é para quem pode." Pois isso é uma verdade! entram muito cedo para a vida religiosa, têm medo de encarar o mundo tal qual ele é! medo da tropa, pode haver uma guerra dum momento para o outro, nunca se sabe e ali estão protegidos! é o 1º medo! depois têm outros medos... e quando chegam aos quarenta anos, arrependem- se!... Agora pergunto eu: e os que estão fora do celibato? e que podem ter sogra como 'Pedro'? alguns têm consciência daquilo que devem ou não fazer! outros não... e então? aqueles que... cala-te boca! Então, por hoje a minha conversa fica por aqui! Henrique Raposo, esta conversa pode entrar num labirinto de ideias e de palavras! e não vale a pena estar a cansar a cabeça! o que vale a pena é avisar os rapazes e as raparigas, quando chegam aos 10 ou 11anos, dos perigos que existem! mais nada. Bom fim de semana!