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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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O Papa Leão XIII e o Papa Francisco

16 fev, 2019 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Leão XIII cortou a ligação entre trono e altar e foi violentamente criticado por muitos católicos em França. Algo parecido com o que hoje se passa face ao Papa Francisco.

A doutrina social da Igreja católica começou a afirmar-se em 1891 com a célebre encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII. Não quer isto dizer que a inspiração evangélica não se fizesse sentir antes daquela data em questões de ordem social. Basta pensar em S. Francisco de Assis, que viveu entre 1182 e 1226.

Mas na era pré-industrial as sociedades estavam rigidamente divididas em diferentes estratos, sendo excecional alguém subir na escala económica e social. Entendia-se que esta era uma ordem natural, que não podia nem devia ser posta em causa.

Com a revolução industrial as coisas começaram a mudar. Mas no século XIX assistiu-se ao que ficou conhecido como a “questão social”. Muita gente, sobretudo em Inglaterra, abandonava os campos e as comunidades rurais onde todos se conheciam e existia entreajuda, para tentarem emprego em fábricas geralmente situadas em zonas urbanas.

Ora nessas fábricas trabalhavam, praticamente sem horário, homens, mulheres e crianças. Reinava uma exploração intolerável, que a luta dos sindicatos (que demoraram a ser reconhecidos e legalizados) conseguiu a custo limitar.

Naquilo que podemos designar por burguesia predominava então uma atitude passiva perante a “questão social”, mesmo entre patrões católicos. Pobres sempre os teríamos… Entretanto, generosas iniciativas caritativas descansavam as consciências.

Resistências a Leão XIII

Boa parte da burguesia, nomeadamente em França, não era religiosa. Ou melhor, apreciava e protegia a religião, como instrumento para manter as classes pobres resignadas à sua sorte. Mas, enquanto consideravam o cristianismo bom para essas classes, eles próprios, os burgueses, não eram verdadeiramente crentes; alguns eram mesmo anticlericais e adversários do cristianismo. Depois, o laicismo agressivo foi adotado por grande parte da classe média alta em França.

Leão XIII veio abalar seriamente este tipo de atitudes. Explicitou, na “Rerum Novarum”, obrigações de teologia moral às quais os católicos não deveriam fugir. O que, naturalmente, lhe valeu fortes resistências no interior da própria Igreja. Um texto esclarecedor sobre esta matéria é o ensaio do Prof. José Miguel Sardica, publicado na revista “Didascália XXIV”, de 2004.

Mas Leão XIII tentou renovar a Igreja também noutros planos. Foi o caso, sobretudo em França, da difícil relação entre os católicos e os políticos no poder, na maioria hostis à Igreja e apostados em apagar a influência religiosa no povo francês, nomeadamente através das lojas maçónicas.

A posição nessa época dominante entre os católicos era ligar trono e altar. Isto é, a Igreja só deixaria de ser atacada pelos poderes públicos com a restauração da monarquia. Pelo contrário, Leão XIII entendia que os católicos franceses deviam aceitar as instituições políticas republicanas, após 1870. E nesse quadro procurarem fazer valer os seus direitos e as suas posições éticas e sociais.

Esta posição papal foi mal recebida por grande parte da igreja francesa da época, incluindo pela maioria dos bispos franceses. Dei-me conta dessa situação ao ler uma biografia do padre Leão Dehon, escrita por Giuseppe Manzoni e com edição portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus – Dehonianos, 2013. Esse livro, cujo original italiano data de 1989, descreve o conflito francês entre a Igreja e o Estado laico entre 1970 e 1914.

Conciliar os católicos com a República

Do lado da Igreja, Manzoni lembra que Pio IX, que inicialmente se mostrara aberto a mudanças, tomou depois posições hostis aos chamados “católicos liberais” e multiplicando críticas e condenações à sociedade da sua época. O seu sucessor, Leão XIII, assumiu uma outra orientação: conciliar os católicos com o Estado republicano francês.

O intelectual católico Albert de Mun propôs fundar um partido católico. Leão XIII, porém, era contrário a partidos confessionais: desejava que os católicos participassem ativamente na política e influenciassem as leis, mas não agrupados num partido católico.

Existia então em França um marcado ódio à religião. E tanto os inimigos da Igreja como a maioria dos católicos concordavam em que não haveria conciliação possível entre o mundo moderno, com as suas instituições republicanas e democráticas, e a Igreja. Leão XIII apostou no contrário.

Perante a posição do Papa, “os católicos, sobretudo os intransigentes, passam do espanto à cólera, ao lamento, à acusação de fraqueza” (pág. 38 da referida biografia). E “a corrente intransigente é também forte no Vaticano”, onde se exalta a memória do antecessor de Leão XIII (pág. 39).

Leão XIII insiste: “a aliança dos católicos com os que pretendem a restauração monárquica é prejudicial à Igreja” (pág. 41). Ora o desagrado com a abertura do Papa ao Estado republicano chegava ao ponto de haver “conventos de piedosas religiosas que até elevam súplicas a Deus pela conversão ou morte do Santo Padre”! (pág. 43).

Não devemos, assim, estranhar a “guerra” que, no interior da própria Igreja, é feita hoje ao Papa Francisco, a vários níveis.

A César o que é de César

A posição de Leão XIII seria seguida pela Igreja após a sua morte e é hoje largamente consensual entre os católicos, mas a conciliação foi atrasada pelo lamentável caso Dreyfus, falsamente acusado de traição à pátria. Nos católicos franceses dessa época estava enraizado o antissemitismo. Por isso a maioria deles (não o Papa) lutou contra a revisão da injusta condenação do militar judeu Dreyfus – que acabaria por ser declarado inocente e reintegrado no exército com o grau de major em 1906.

As ideias de Leão XIII, que distinguia “entre os valores de consciência e os da política, entre a esfera de Deus e a de César” (pág. 45), teriam consagração plena com a condenação pelo Papa Pio XI, em 1926, da “Action Française”. Dirigida pelo não católico Charles Maurras, de quem Salazar era próximo, esta organização de extrema-direita defendia a utilidade da Igreja para manter, ou recuperar, um modelo social e político conservador.

Não há, pois, motivo para nos preocuparmos excessivamente com os ataques de que o Papa Francisco tem sido alvo e certamente continuará a ser. A sua visão evangélica e profética acabará por prevalecer.

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