15 fev, 2019
Qual é a pior coisa que os católicos portugueses podem fazer em relação às reportagens do "Observador" relativas aos abusos pedófilos cometidos por membros do clero português? Fechar os olhos ou fingir que a Igreja está a ser vítima de uma cabala mediática.
A Igreja tem razões de queixa do ambiente mediático, sem dúvida, mas não neste caso. Não, a Igreja não é a vítima neste caso, é a agressora. É agressora três vezes. Primeira: os abusadores comprovados são membros do clero. Segunda: a hierarquia escondeu o problema de várias maneiras. Terceira: os paroquianos em geral também fingiam que nada se passava. Em Portugal ou em qualquer outro país, a dimensão dos abusos dentro da Igreja só é compreensível à luz da hipocrisia dos paroquianos em geral, que baixam os olhos ao poder clerical, que se sentem inferiores ao senhor padre e ao senhor bispo e que, por isso, pactuam com a cultura do silêncio. É esse silêncio que tem de ser rasgado em nome do evangelho. A cúria e o clero não são o evangelho.
Dos casos relatados pelo "Observador", o que mais me marcou foi o do seminário do Fundão. Um padre mais velho e superior recebeu uma queixa dos alunos relativa aos abusos praticados no seminário pelo padre abusador. Qual foi a sua reacção? Uma mera conversita com o padre suspeito e, de seguida, deixou cair o assunto, não o levando ao bispo da Guarda. Quando foi confrontado pela polícia, invocou que o seminário (o local dos abusos) é uma “família” e que não podia meter a colher “nessa família”.
É tão grave que até me dá vontade de rir ou chorar, não sei bem. Isto mostra que há um estranho corporativismo entre padres, é como se os padres tivessem uma lealdade corporativa acima de qualquer outra lealdade. Ora, a lealdade do padre deve estar no evangelho, na verdade, na defesa das crianças, não deve estar no respeitinho pelo colega, seja ele qual for. A Igreja não é uma corporação, é a pedra da palavra.
Este ambiente corporativo e secreto continuou a forma como a estrutura da Igreja de Guarda quis anular o testemunho do único padre, Vítor Fonseca, que acreditou de facto nos jovens. É triste – mesmo triste – ver a estrutura da Igreja a usar um legalismo do direito canónico para camuflar a verdade. Vamos lá ver se nos entendemos: Vítor Fonseca era (é?) o director espiritual do seminário, isto é, recebia as confissões; sucede que as queixas por ele ouvidas não foram ouvidas no contexto da confissão. Vítor Fonseca recebeu denúncias colectivas dos pais e depois ouviu dois garotos, que, a chorar, lhe descreveram os abusos. Foram conversas normais, não confissões. O que fez a Igreja? Tentou alegar que o testemunho do padre Vítor Fonseca estava a violar o sigilo inerente à confissão. Aqui não tenho dúvidas: é mesmo para chorar. Aquelas conversas não foram confissões privadas e sagradas, foram denúncias públicas, gritos de ajuda.
O trabalho notável da equipa do "Observador" interpela-nos como católicos e como portugueses. Neste sentido, há que repetir para a realidade portuguesa aquilo que já foi dito para a realidade católica internacional: perante desilusão que é esta face da Igreja, há que resistir e ficar em nome da fé, do evangelho, de Jesus Cristo, que nos avisou que a sua própria igreja seria composta por pecadores (Pedro está quase sempre errado ou desorientado no evangelho).
Há que resistir, ficar e ajudar a limpar. Há que ficar e ajudar a mudar esta cultura de secretismo.
Desde mudanças no protocolo até ao reforço da presença feminina (a agressão sexual é 99% masculina), há muita coisa a fazer. Há que enfrentar o problema de frente aqui e agora, até porque o cenário vai piorar antes de melhorar.