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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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​222.39€ ou um Bom Natal

18 dez, 2018 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Os afectos não só são facilmente compreensíveis nesta época de orfandade e abandonos múltiplos como, do ponto de vista existencial, não comprometem nada nem ninguém.

O Presidente da República comemorou 70 anos. É hoje, visto à distância, uma pessoa muito diferente do tempo das sopas e dos mergulhos, quando uma personagem pública se construía no carisma de uns defeitos jeitosíssimos e uma energia desbordante, um bocadinho descontrolada para ser inteiramente normal. Mas a normalidade, seja lá o que for, só convém às pessoas comuns, ou como agora se diz, anónimas, e o Professor Marcelo foi fazendo o seu caminho no imaginário dos portugueses, dando notas aqui e acolá, com grande confiança no veredicto final. Sobre aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa mantém desses tempos apenas os seus amigos e familiares próximos poderão dar conta, porque ele goza um pouco, também, do poeta fingidor tão finamente gizado por essa outra grande personalidade portuguesa, igualmente múltipla.

Uma parte fundamental da disponibilidade humana e intelectual do Professor parece radicar numa competência genial para gerir, tão intencional quanto generosamente, o que é o íntimo e particular com o que é público e, logo, político, uma construção sincera e mediática a partes iguais que definiu como dos “afectos”. Ora, os afectos não só são facilmente compreensíveis nesta época de orfandade e abandonos múltiplos como, do ponto de vista existencial, não comprometem nada nem ninguém. A paixão e o ágape são de outra ordem existencial e chegaram, realmente, pela longa estrada presidencial. Só por essa emergência, seria absolutamente injusto ignorar o desejo consciente que o Presidente, e a pessoa de MRS, têm de se comprometer, de se intrometer, de integrar e de transformar. Se ele fosse um rei bem poderia ser conhecido como “O Que Estava Lá”, o Chefe de Estado das periferias materiais e existenciais que contraria conscientemente a auto-condenação de que sofrem os políticos, que ignoram o preço dos bens e das bondades e passam a correr, de sirenes e vidros fumados, pelas paragens apinhadas do povo constrangido à distante difícil vida real, globalizando em importantíssimas reuniões as suas indiferenças.

É risível e infantil dizer que o Presidente tem tiques populistas ou está a dar cabo da vida aos sacrossantos partidos políticos, cuja formação, estrutura e devir tantas vezes ensinou, e que acham que nós os devemos aceitar com uma candura crente. Marcelo Rebelo de Sousa, talvez falando muito ou demais, comentador uma vez comentador para sempre, cumpre um dever presidencial há muito aguardado na sua capacidade de chamar a atenção dos profissionais da coisa pública para aqueles mínimos de interesse na causa dos cidadãos que devem professar. Sem cassetes pirata, pieguices piedosas, arroubos moralistas nem equidistâncias estudadas, recebeu dos eleitores, pela sua própria prática, o agrément para manter o funcionamento da democracia dentro de uma ética que ambiciona ser mais do que os mínimos formais e devemos agradecer-lhe por isso.

Inesperadamente, ou não, não têm sido poucos os incidentes graves, as disfuncionalidades dos vários Sistemas do Estado, que o país tem aceitado com um reboliço menor, já que esta última onda de greves corresponde a um outro grémio de interesses. Desconheço como equacionam os dirigentes políticos este fenómeno de tibieza consentida na atmosfera social mas parece-me que também tem alguma relação com o Presidente, na confiança que inspira, na companhia que nos faz, a todos, genuinamente interessado, como pudemos ver em directo apelando ao nosso contributo para o Natal das vítimas permanentes da austeridade, agora com outros nomes e com outras contas, mas que, naquele dia, foram de 222,39 euros maternalmente aplicados.

Esta tranquilidade e esta cordura não são populistas nem efeito do populismo: antes pelo contrário, são um bom antídoto para tais extremos desgovernados e já dizem por aí, Europa fora, que estamos imunizados. Seria bom que o estivéssemos, mas não ponho as mãos no fogo e, quem sabe, quanto tempo mais a vontade popular se vai portar como uma brisa morna e suave e quando soprará a tempestade perfeita. Entretanto, como tantos portugueses que vão trabalhar e que vão acompanhar as dores durante os dias em que festejamos o aniversário do Rei dos reis e o Consolo dos pequenos, dos marginalizados e dos desvalidos, o Presidente estará com as crianças doentes, os seus pais e os seus cuidadores, inspirado pela Bondade Infinita. E nós, um bocadinho, estaremos com ele, não só por empatia mas porque lhe devemos o modo recuperado com que nos ajuda a sentir como um povo, como uma comunidade e como um país.

Cara leitora, caro leitor: votos de um Bom Natal, de Paz e de Esperança!

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