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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Tentar perceber

A querela dos nacionalismos

17 nov, 2018 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Um debate sério sobre a questão dos nacionalismos que hoje se afirmam é menos simplista do que às vezes parece. E a globalização acentuou a necessidade de instâncias internacionais.

Em Paris, na comemoração do centenário do armistício da Grande Guerra, afirmou Macron, presidente da França: “O patriotismo é precisamente o oposto do nacionalismo. O nacionalismo é uma traição ao patriotismo. Ao dizermos ‘os nossos interesses primeiro, o que quer que aconteça aos outros’, estamos a apagar aquilo que de mais precioso uma nação pode ter, o que lhe dá vida, o que lhe dá grandeza e o que é o mais importante: os seus valores morais”.

Numa altura em que parece renascer um certo nacionalismo que levou a duas guerras mundiais na primeira metade do séc. XX, é positivo que Macron estabeleça este tipo de distinções, ainda que possamos discordar do seu rigor. Mas importa que o debate em torno do nacionalismo não se torne uma mera querela semântica, uma guerra de palavras.

Comecemos por olhar os países membros da UE – quantos deles são Estados-nações? Muito poucos, entre eles Portugal, que tem as mais antigas fronteiras da Europa, e daí, provavelmente, o fortíssimo sentimento de identidade nacional que nos caracteriza. A Espanha, por exemplo, é uma Estado plurinacional, bem como a Alemanha ou o Reino Unido. Daí que não se aceitável generalizar o conceito de “Estado-nação” a países onde ele não se aplica.

O internacionalismo e as nações

O grande impulso para a difusão de uma consciência nacional foi dado pela Revolução Francesa, quando os cidadãos foram chamados a pegar em armas para defender a pátria dos invasores estrangeiros. Até aí, os exércitos eram em grande parte constituídos por mercenários e/ou por pessoas com ligações de subordinação a aristocratas, uma herança do feudalismo.

Ao longo do séc. XIX a ideia de “nação” foi-se reforçando. Para isso, frequentemente se tornou útil inventar um passado glorioso. Ninguém levava a mal.

Ora, como disse ao “Público” Sandrine Kott, professora da universidade de Genebra, também foi ao longo do séc. XIX que se difundiram os projetos internacionalistas, como as associações e organizações internacionais. “O nacionalismo é mesmo um projeto internacional, na medida em que se impõe como um modelo universal de organização política”.

Acrescentou Sandrine Kott: “O nacionalismo e o internacionalismo são realidades co-construídas; e contrariamente ao que certos discursos nacionalistas afirmam, o internacionalismo não constitui de forma nenhuma uma ameaça contra o Estado-nação ou contra as identidades nacionais. Pelo contrário, permite um espaço de expressão e de enriquecimento”.

Nacionalistas numa frente internacional

Por outro lado, é curioso que as forças nacionalistas, eurocéticas, anti-imigração, etc., se estejam a tentar unir para destruírem a UE por dentro. Para isso procuram formar uma frente comum, que ganhe peso no Parlamento Europeu. Uma frente patrocinada por Stephen Bannon, ideólogo e ex-colaborador de Trump, que já montou um “quartel general” em Bruxelas com essa finalidade. É uma espécie de internacional nacionalista e populista.

Aliás, a palavra “nacionalista” não tem um significado unívoco. No séc. XIX a unificação italiana concretizou-se pela força das armas. Ora, hoje, o homem-forte do governo italiano de coligação, Salvini, lidera um partido que agora se chama Liga, mas há pouco tempo era “Liga do Norte”, porque queria separar-se do Sul de Itália, criando a Norte um novo país, chamado Padânia. Mas Salvini é geralmente classificado de nacionalista…

O modelo nacional foi seguido na maior parte da África pós-colonial. Com resultados muito negativos, pois dividiu raças e tribos, ao manter a maior parte das fronteiras coloniais. Tem sido este um fator importante da quase permanente guerra ou guerrilha em várias regiões africanas.

Globalização e Estados nacionais

A globalização não é um fenómeno de hoje. Até se pode dizer que, com as descobertas, Portugal foi um dos países que contribuiu para um mundo global. Depois houve períodos de maior ou menor abertura ao mundo exterior. Durante larga parte do séc. XIX, por exemplo, na grande maioria dos países europeus as fronteiras estavam abertas à passagem de pessoas – não eram necessários passaportes.

Nas últimas décadas a informática e a internet deram um grande impulso à globalização, sobretudo no setor financeiro. O poder político de certa forma enfraqueceu face ao poder económico e financeiro, o que ameaça a democracia. Um Estado da dimensão do português, por exemplo, tem um poder limitado perante uma grande empresa multinacional – e hoje as mais importantes multinacionais encontram-se no sector das novas tecnologias.

Por isso o poder meramente nacional precisa de ser complementado por um poder supranacional, além de exigir um maior respeito pelo direito internacional e pelas organizações multilaterais. É algo que sucessivos papas têm reclamado, mas a que se opõem nacionalistas do estilo de Trump – “America first”. Outra via para fortalecer os estados nacionais está em partilhar soberania, como acontece na integração europeia: a união faz a força.

Por isso os que hoje se reclamam do nacionalismo para destruírem a UE procuram coligar-se internacionalmente. Parece contraditório mas não é.

Este conteúdo é feito no âmbito da parceria Renascença/Euranet Plus – Rede Europeia de Rádios. Veja todos os conteúdos Renascença/Euranet Plus

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