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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​Ele porquê?

31 out, 2018 • Opinião de José Miguel Sardica


Bolsonaro é a consequência, não é a causa; é um efeito, não é o problema. O Brasil é um país imenso, cheio de potencial incumprido e cheio de problemas.

Ele não! Ele jamais! Ele nunca! E todavia… Jair Messias Bolsonaro, capitão reservista do exército e deputado federal, tornou-se, pela vontade maioritária expressa nas urnas, o 8.º Presidente da 6.ª República do Brasil, o regime democrático que sucedeu à Ditadura Militar.

À semelhança do que aconteceu com Donald Trump, há quase dois anos, o mundo interroga-se como foi possível um tal desfecho. O que é que aconteceu ao Brasil para cair nas mãos de um populista que andou a vida inteira a saltitar de partido em partido, que nunca debateu em campanha e que se distingue pela retórica securitária, dura, preconceituosa, ultraconservadora, machista, assente “no boi, na bala e na Bíblia”, ou o mais que (com razão) se lhe queira chamar?

Bolsonaro é a consequência, não é a causa; é um efeito, não é o problema. O Brasil é um país imenso, cheio de potencial incumprido e cheio de problemas. Há quase dezasseis anos, desde janeiro de 2003, que estava nas mãos do PT. E desde então até hoje, se é verdade que muitos milhões de brasileiros saíram da pobreza, muitos mais lá continuaram, sob governos de uma extrema-esquerda que se afundou em escândalos de corrupção, que deixou campear a violência e que, nos últimos tempos, paralisou o que parecia ser uma pujante economia na América Latina. Lula da Silva, o caudilho dos descamisados, acabou na prisão; Dilma Rousseff foi apeada. A operação Lava-Jato enraizou fundo a ideia de que na elite governante brasileira não há puros e de que é entre o “mensalão” e o compadrio que alguns prosperam, por sobre uma sociedade profundamente desigual, onde todos arriscam a vida – os pobres numa mísera existência na favela, a classe média labutando para defender magros empregos e os ricos para não perderem privilégios – num país onde a violência, o sequestro, o assalto, o tiro perdido e a insegurança preenchem o dia-a-dia.

Por muito que muitos tenham gritado “Ele não”, muitos outros aceitaram que “Ele sim”. Bolsonaro foi eleito por um país cansado, desalentado, farto de corrupção e de crime, ansiando por qualquer coisa diferente de um PT envelhecido e histriónico. Não: ali não se escolheu entre a democracia de Haddad ou a ditadura de Bolsonaro. Haddad era uma criatura de Lula, um radical de esquerda, uma extensão do “petismo” que já não convence a maioria; e Bolsonaro era… o outro, a única alternativa que restou depois de a primeira volta das eleições ter mostrado o absoluto colapso e a absoluta irrelevância do centro, de Ciro Gomes, Geraldo Alckmin e companhia.

É preciso compreender a extensão do descontentamento de quem o elegeu por convicção ou, de maneira mais envergonhada, como um mal menor. Bolsonaro não se recomenda e a democracia pode ser uma planta política frágil nas mãos populistas dele, sobretudo num país onde ela é recente e as diferenças classistas e regionais tornam convidativa uma mão forte que tudo mantenha unido.

Ele porquê? Porque o Brasil chegou ao beco-sem-saída de não ter ninguém, ou nenhuma força, capaz de casar as liberdades de que não devemos abrir mão com a segurança socioeconómica de que também não queremos prescindir. O fenómeno não é novo e lembra-nos a Europa de entre Guerras, nos anos 1920 e 1930, quando a erosão das democracias liberais deixou campo aberto aos dois extremos – o bolchevismo, à esquerda, e o fascismo, à direita. Quando tudo se resumiu a escolher entre os sovietes e as fardas, entre os agitadores e os duros, remediados, classes médias e forças vivas penderam sempre para o lado da (extrema) direita. Foi assim que Bolsonaro vai morar no Palácio do Planalto. E será por causa disto que o populismo radical direitista continuará a triunfar noutros locais.

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