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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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​Marcelo Caetano: a realidade e o enigma

03 out, 2018 • Opinião de José Miguel Sardica


Suficientemente prestigiado, moderado e centrista para tentar obrar o ecumenismo político possível, no tremendo vácuo criado pela demissão do velho ditador.

Há cinquenta anos, no início de Outubro de 1968, o Portugal político antecipava novidades. Depois do longuíssimo consulado ditatorial, a lei da vida vencera finalmente Salazar, arredando-o do poder por incapacidade física.

Desprovido do verdadeiro “dono daquilo tudo”, o presidente corta-fitas, Américo Tomás, olhou à volta, à procura de um “delfim” do regime que o poupasse aos revolucionarismos que abalavam o mundo, e que defendesse, nesse mar revolto que ia de Paris a Praga e do Vietname à América, o “ordeiro” Portugal e a “sacrossanta” África. Franco Nogueira era demasiado “ultra”; Adriano Moreira demasiado “progressista”; outros nomes também não (lhe) serviam.

A escolha recaiu em Marcelo Caetano, um homem do regime, antigo vice de Salazar, afastado da ribalta nos anos 60, mas, no fundo, suficientemente prestigiado, moderado e centrista para tentar obrar o ecumenismo político possível, no tremendo vácuo criado pela demissão do velho ditador. Parece que Caetano resistiu: disse aos próximos que outros fariam melhor do que ele e, na tomada de posse, declarou logo que um país até aí governado por um homem extraordinário teria de habituar-se a homens normais. Estava-se no início do Outono de 1968. Cinco anos e meio volvidos, na Primavera de 1974, Caetano e o regime acabariam depostos pelo golpe militar do MFA. Exilado na Madeira, depois no Rio de Janeiro, onde a custo refez a vida (universitária), o segundo e último presidente do conselho do Estado Novo ali morreu, em 1980, e ali está sepultado.

Para a historiografia, sobretudo aquela construída a partir da memória política de quem nunca acreditou na promessa marcelista inicial de “abertura”, nem aceitou apenas a “evolução na continuidade”, é fácil dizer, hoje, que o consulado do “delfim” foi a crónica de uma impossibilidade, de um beco-sem-saída e, por isso, de uma morte anunciada. Foram quase seis anos perdidos, e o melhor era o Estado Novo ter desaparecido logo com a queda política do seu criador e “alma mater”. Quem, todavia, mergulha nas fontes, nos discursos, na imprensa, no dia-a-dia de 1968-74; quem, sobretudo, se dispõe a revisitar o pensamento e a ação de Caetano, percebe que a inevitabilidade do (de um) 25 de Abril é posterior a 1971-72 e só certa na transição de 1973 para 74. Se não fosse pela Guerra Colonial – o nó-górdio que tudo contaminou – Caetano poderia ter ganho umas eleições livres, capitalizando o reformismo e a melhoria da condição socioeconómica dos portugueses que de facto proporcionou no início do seu governo. Certo: não era um democrata e não acreditava na democracia. Mas sem a Guerra, com mais tempo e com um centro-direita mais vertebrado e esclarecido, talvez o marcelismo pudesse ter sido uma antecâmara de uma transição que, partindo de dentro do regime, o tivesse levado, por reformas “pactadas”, para a democracia – como aconteceu em Espanha. Nada disso foi, contudo, possível.

O presidente do conselho não era, nem podia ser, Adolfo Suárez e acabou de forma bem mais abrupta do que o governo de Carlos Arias Navarro em Madrid. E por isso o marcelismo entrou para a história como o epílogo de um estado de coisas que o “cancro” africano condenou a não ter outra saída que não a deposição do regime e um subsequente PREC. Tudo visto, afinal, Caetano não conseguiu triunfar porque não pôde ou porque nunca quis? Eis o enigma de 1968-74. E para lá desse enigma, há o contra factual: se a “abrilada” de Botelho Moniz tivesse vencido em 1961, e Caetano chegado ao poder sete anos antes de 1968, o que poderia ter acontecido de diferente e o que poderia ter sido evitado em África e realizado em Portugal?

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  • A dúvida
    03 out, 2018 Lisboa 15:33
    https://www.cmjornal.pt/mais-cm/domingo/detalhe/a-pide-nao-estava-muito-interessada-em-matar
  • Ricardo
    03 out, 2018 Lisboa 12:28
    Muito "bom " consegue escrever sobre o fascista Caetano sem escrever uma linha sobre a PIDE uma espécie "catita " de GESTAPO ibérica que matou uns milhares , mas que no fundo era "boazinha " não admira a RR dar guarida a este analista a IGREJA foi um pilares do regimes nazi- fascista de Portugal durante 48 anos (1926-1974).