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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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​Crime e castigo, e redenção

18 set, 2018 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Viver bem os desafios atuais e futuros da Igreja é viver com desgosto todos estes imensos males e é também oferecer o seu préstimo para emendar o erro.

Há uns anos, quando os meus filhos estavam de passagem por uma idade angelical e eu era uma mãe muito inexperiente, surpreendi-me, sem compreender, com uma observação de Robert Lundlum num livro tão negro quanto intuitivo: as pessoas que mais cometem o crime de perjúrio perante o Tribunal são as mães dos arguidos. A «estatística» vale o que vale, mas pensei nela repetidamente e ainda mais quando uma pessoa, que respeito tanto no plano intelectual como ético, argumentou comigo, perante os primeiros grandes escândalos da pedofilia no contexto da Igreja Católica, que aquilo a que eufemisticamente poderíamos chamar de falta de transparência, se devia a um comportamento, em certa medida compreensível (sic), de uma família que protege os filhos ou, penso eu desde então, que teve a ideia triste de crer - com uma fé pouco esclarecida - que a "coisa" não iria tão longe ou não era tão grave ou... ainda, que a roupa suja se lava em casa, embora nalguns casos essa tarefa também tenha sido entregue a mãos pouco dinâmicas ou pouco conhecedoras das lei da barrela. Lavagens à parte, com o tempo e o estudo, puderam compreender melhor a minha vida psicológica e os seus mecanismos de defesa. Também pude compreender que uma mãe suficientemente boa, embora possa sentir o impulso primário de proteger o filho que adotou um comportamento desviante e/ou criminoso, (às vezes basta uma sequência trágica de disparates ignorados) e se foi abeirando das margens da lei, e está, por isso em risco, tem de compreender que há princípios nas sociedades que não devem ser postos em causa - como a igualdade dos cidadãos perante a lei e o seu primado - e que a melhor forma de ajudar um criminoso a recuperar a sua dignidade é levá-lo perante a justiça. Se as leis são injustas ou imperfeitas, devem-se mover os adequados mecanismos democráticos para que sejam alteradas e melhoradas.

Seja como for, qualquer tipo de abuso sexual é um crime hediondo por se situar numa esfera de intimidade e de violência e manipulação emocional e afetiva das vítimas que afeta a estrutura de formação, desenvolvimento e ajuste da sua personalidade. O seu trágico efeito é várias vezes aumentado quando as vítimas são crianças, menos estruturadas, mais vulneráveis e com menos instrumentos para processar as experiências traumáticas. A maioria das parafilias representam, pois, uma ofensa sexual grave a outra pessoa e como muitas vezes são recorrentes, constituem uma prática sexual danosa e persistente, que num mesmo indivíduo pode ser combinada com outros tipos de prática sexual igualmente lesiva para o outro e para o próprio. Portanto, mesmo no contexto de uma sociedade sexualmente permissiva, a pedofilia é um transtorno/crime gravíssimo que muitos investigadores estimam ainda não estar suficientemente referenciada. E uma vez detetada, se não é tratada de acordo com a lei e as boas práticas terapêuticas, as suas vítimas, também não serão identificadas nem reconhecidas. Tal significa que não terão acesso ao tratamento e ao acompanhamento que necessita para recuperar de uma experiência altamente traumática. É-lhes negado o controlo da ansiedade, um autoconceito positivo, uma vida relacional, amorosa e se, perpetuando-se a sua condição de vítimas e vítimas, quase sempre, silenciadas. Depois, também não parece evidente que um violentador sexual possa ser, no geral, uma pessoa realmente bem adaptada nas várias esferas da sua vida, embora possa parecê-lo, pelo que não lhe providenciar a punição e a terapia merecidas não só favorece a escalada do comportamento como inviabiliza para o doente um adequado assumir de responsabilidades e a probabilidade de este influenciar uma derrocada organizacional

Conhecer e reconhecer a multidão de casos de pedofilia que tiveram persistentemente lugar nas fileiras da Igreja Católica é um motivo óbvio de repúdio para com o crime, provação para com os criminosos, aflição diligente e procura de cuidado para com as vítimas e uma necessidade absoluta de redenção. Não apenas a redenção da instituição Igreja, nem daquilo que numa ótica funcionalista muito distante do cristianismo se vulgarizou sob o termo de hierarquia – se bem que é de bem tratar as responsabilidades aos seus vários níveis – mas a redenção de cada cristão, na banalidade da sua experiência de fé e de vida em sociedade: a Igreja é o conjunto vivo dos crentes em Cristo.

Há, sim, motivo de repúdio profundo e persistente, mas tem de ser um repúdio que não se fecha no escândalo e se abre ao cuidado de todas as pessoas envolvidas, mesmo aquelas que ainda estão para chegar: as crianças, de quem as famílias cuidam, e aquelas que são entregues por estas, às vezes com laxismo e indiferença, às várias instituições educativas, extracurriculares, pastorais, de lazer, isto é, onde a ocasião pode fazer o ladrão; os adolescentes e jovens que crescem numa sociedade híper-erotizada, entregues às maravilhas da navegação clandestina e à magia do grande substituto da educação sexual que é a pornografia e que, às vezes, desejam seguir uma carreira de educadores, de sacerdotes, … e que certamente precisam de um acompanhamento personalizado e de um investimento diligente e adulto na sua saúde moral e mental; dos educadores dos futuros educadores e dos líderes dos futuros líderes, que necessitam compreender que na sociedade global a educação das novas gerações tem de ser atenta, exigente, aberta, personalizada, lenta, proporcionando o convívio com formadores até agora muito ausentes das instituições de formação – no caso dos seminários e das faculdades de teologia, as mulheres e os casais – planeando e gerindo essa formação com rasgo, com coragem, com lucidez, com uma avaliação constante de mestres e de aprendizes, porque quase tudo o que vivemos é antigo mas tragicamente metamorfoseado nas misérias da pós-modernidade.

E vou resistir a confrontar-me com os meus amigos e com os amigos dos meus amigos e, assim, apenas abrir o coração: não é preciso ser-se cristão para se ser boa pessoa, para se ser decente, para se viver bem numa zelosa consciência bem formada, para se aspirar ao alto e, diz o Magistério, para se viver santamente. Mas viver em Cristo, para O seguir, não basta fazer trabalhar o coração e a mente. A fé cristã não é uma fé que se possa adotar na negação da Igreja – santa e pecadora – que nos deixou Cristo, para não nos deixar sozinhos. Certamente, não o fez por embirração mas por uma exigência da nossa própria natureza, a natureza humana daquele povo contado no Antigo Testamento, entre glórias e pecados, vitórias e desgraças, ousadias e mesquinhez. Ser cristão é ser dois ou três, é ter consciência dessa história, a história que ressoa na Igreja, que nós necessitamos aprender dela e de nela, na sua trivialidade e na sua excelência, encontrar os irmãos, partilhar com eles a mesa, escutar o Espírito, aguardar a vida eterna.

Portanto, viver bem os desafios atuais e futuros da Igreja é viver com desgosto todos estes imensos males e é também oferecer o seu préstimo para emendar o erro e para garantir que nada disto se repetirá no futuro. Não será algo fácil, provavelmente muito há ainda para destapar, mas é a oportunidade de conversão a que todo o cristão é, quotidianamente, chamado. Trabalhemos, pois, por uma Igreja melhor e por um mundo mais seguro, mais belo e mais justo, o que é exatamente a mesma coisa. Tudo é tarefa do Povo de Deus.

Comentários
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  • anónimo
    18 set, 2018 19:05
    Podemos ofender a Deus que as consequências não são percetíveis mas não se pode ofender a besta pois as consequências são bastante reais, cada palavra cortante à besta tem consequências na vida de quem as pratica pois não existe ninguém neste mundo que esteja livre do pecado, não tenha pecado e ela sabe disso e argumentando tal facto é-lhe permitir atribular o caminho desse pecador. Por conseguinte depois de cada facada, algo em nosso redor se vai voltar contra nós, (matemática). No entanto é Deus que escolhe o momento e quem conhece e se gere por esta regra tem de ficar vigilante, muito vigilante, não facilitar e a besta usa a regra mas por infortúnio da mesma o que seria eficaz num momento certo não resulta por questão de conjuntura. Provavelmente já tinham constatado o facto mas para quem a ofende, como vós, aqui vos deixo um do dogmas do meu manual de sobrevivência.
  • JOAQUIM S.F. SANTOS
    18 set, 2018 TOJAL 11:01
    “– no caso dos seminários e das faculdades de teologia, as mulheres e os casais –“. Muito bem. Mas eu pergunto: por acaso as mulheres e os casais, mestres nas universidades católicas, não tomam pilula, não usam o DIU, ou praticam outro método anticoncetivo, por acaso ensinam os seus filhos a respeitarem os dez mandamentos, incluindo o 6º e o 9º mandamento da lei de Deus e a absterem-se de ter relações sexuais antes do casamento, por acaso casam pela igreja? Se assim não o fazem são como frei Tomaz, "Faz como ele diz e não faças o que ele faz". Estes casais e estas mulheres são antes uma pedra de tropeço, pois foi uma das portas por onde entrou a pedofilia nos seminários e no clero. Os intelectuais vindos da família intelectual, dita iluminada, que floresceu dentro e fora da Igreja, como cogumelos, mas dos venenosos, mataram o respeito pelos mandamentos, a devoção à Virgem Maria, a ação diabólica de satanás, por assim dizer, mataram o pecado. Raça de míscaros envenenados que não reconhece as suas próprias culpas.