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SIDA ainda é um tabu. “Negaram-me um aperto de mão em pleno séc. XXI”

20 jun, 2018


Com o objetivo de cumprir as metas internacionais para a deteção precoce do vírus VIH, entrou em vigor, em Maio, o despacho que autoriza a realização de testes rápidos de rastreio de infeções por VIH nas farmácias comunitárias. Mas será que profissionais e sociedade estão preparados para acolher esta iniciativa com a naturalidade que se exige? Visitámos uma instituição que há mais de 20 anos foi uma das pioneiras no acompanhamento aos doentes com VIH: o Centro viHda+, da Cáritas Diocesana de Coimbra.

Na Europa, estima-se que 15 % das pessoas que vivem com VIH não se encontrem diagnosticadas, ou seja, uma em cada sete não sabe que está infetada, prevendo-se que em Portugal esse valor possa ser inferior a 10 %. Mas a taxa de diagnóstico tardio da doença mantém-se das mais elevadas registadas na União Europeia.

O Centro viHda+, em Coimbra, foi pioneiro no acompanhamento psicológico e social, dos doentes com SIDA. Uma doença com mais de 30 anos de conhecimento que ainda é tabu, porque é associada a grupos marginais. Em Portugal, estima-se que mais de 20 mil pessoas tenham SIDA, que continua a ser uma doença mortal.

A SIDA é a consequência tardia de uma infecção pelo VIH (vírus da imunodeficiência humana) e é por isso que se fala de síndrome de imunodeficiência humana adquirida. Uma deficiência avançada no sistema imunitário que pode conduzir ao desenvolvimento de doenças graves ou mesmo à morte.

“Ouvir música, contar anedotas, rimo-nos um dos outros”. São assim passados os serões na sala de convívio do Centro viHda+, da Cáritas diocesana de Coimbra. Uma espécie de centro de dia, das 9h00 às 21h00, aberto todos os dias do ano. “Tem alturas que parece uma casa de segredos”, deixa-se rir Luís Simões, de 53 anos, que se apressa a dizer que, no seu caso, não há segredos. Não se importa de ser fotografado. Dá o nome verdadeiro, porque diz não ter nada a esconder.

“Não tenho que esconder, porque ninguém me obrigou a nada. Se estou nesta situação, fui eu próprio que procurei. Quem faz asneiras sofre as consequências”, começa por contar à Renascença, sobre a sua história de vida. Luís lembra-se de ter sido militar e de outros trabalhos que teve em empresas de Coimbra. Mas o que não esquece mesmo foi o ano de 2002. “Foi por minha estupidez, com uma seringa de um colega que já não é vivo. Eu sabia que ele tinha VIH, ele avisou-me várias vezes, mas eu não liguei, estava a ressacar. Tive as consequências disso tempos mais tarde, em 2002. Quando soube, andei ano e meio em que queria esquecer tudo e todos. Era um excesso tão grande de cocaína heroína, haxixe, ácidos...”, recorda.

Há dez anos, decidiu mudar de vida. Bateu à porta do Centro viHda+, da Cáritas Diocesana de Coimbra, e, desde então, nunca mais voltou a consumir drogas. “Vim aqui ter através da equipa de rua do centro, ainda consumia. Tive a ajuda que precisava, principalmente a nível psicológico. Ajudaram-me a passar uma fase muito má, fui sobrevivendo. No dia-a-dia, basta efaltar umas horas aqui, se eu não aparecer para o pequeno-almoço, estão me a ligar para saber onde ando”, diz em tom de agradecimento.

Estigma começa em casa

Mas nem todos os infetados com o vírus VIH contraíram a doença em contexto de drogas. A Marta, nome fictício, 45 anos, aconteceu-lhe, há 12 anos, o que nunca imaginou que pudesse acontecer. “Eu sabia dos riscos, mas nunca pensei que pudesse contrair por relação sexual desprotegida. Ele não me avisou. E só foi descoberto o vírus por análises, porque eu não tinha sintomas”, partilha.

O mais difícil para Marta tem sido apresentar a doença em casa. “A minha mãe não me quis em casa, tinha que lavar a loiça à parte, o meu filho não podia beber do mesmo copo que eu. A minha mãe não tinha formação sobre a doença. Sem esta casa da Cáritas, não ia ter ajuda”, conta.

Também Luís se queixa do mesmo. “Viver em casa da minha irmã é complicado, sempre com paranóias, tenho que desinfetar tudo. Às vezes, digo-lhe, 'tens tanta informação, eu vou-vos infetar como?'”.

Luís e Marta são dois dos utentes do Centro viHda+. Carole de Oliveira é a directora técnica e psicóloga que acompanha os 36 utentes diagnosticados com VIH. “Este projeto começou a surgir na sequência de outros que já existiam em 2000. Prestamos um apoio muito diversificado: social, jurídico, psicológico, passando por outras questões como a higiene. Temos serviço de balneário, porque alguns utentes não têm quarto de banho, e serviço de refeições, lavandaria...”, enumera a responsável, salientando que, “a Cáritas há muitos anos que olha para este próximo, que é quem mais precisa de ajuda”.

A principal preocupação de quem acompanha os doentes com VIH é o estigma social. Para Carole de Oliveira, a SIDA ainda é vista como um tabu. “A pessoa com VIH tem uma vida perfeitamente normal. Ficamos muito espantados, existe muita discriminação e muito estigma e, às vezes, até nas categorias em que menos se espera como na área de saúde. Partilhar talheres não é um comportamento de risco, dar um aperto de mão não é um comportamento de risco, cumprimentar não é comportamento de risco e é nestas questões que o doente continua a sentir-se discriminado”, denuncia.

Para quebrar as fronteiras do tabu, o assistente social Rui Sousa trabalha como mediador. “Tento parecer invisível, como se fosse um amigo, para que aquela pessoa seja tratada de forma igual. Notamos, quando acompanhamos os utentes a alguns serviços, que existe preconceito. Não os maltratam, mas não lhes dão atenção devida. Basta uma pessoa com cabelo pintado, ou com piercings, basta isso para a pessoa ser tratada de maneira diferente”, conta.

A principal luta é conseguir arranjar trabalho. São raros os casos de sucesso. Sem querer dizer o nome, há uma funcionária da Cáritas, de 58 anos, que há 19 conseguiu, a juntar ao apoio recebido, trabalho ali mesmo. “Faço o que for necessário: ajudar os utentes em tudo, desde refeições a lavar loiça, limpar a casa... Sou VIH positiva desde os 35 anos e precisava sair do lodo. Queria sobreviver, já sou avó e nunca mais voltei a estar mal. Queria viver e vivi e hei-de viver o tempo que Deus quer. Tenho aqui pessoas que são família, a família não está no sangue”, desabafa.

Vítor Silva anda aprender carpintaria. Aos 49 anos, sonha ter um trabalho. “Eu gosto de criar na carpintaria. O formador ensina-nos. E também faço cadeirões em paletes. Desde que aqui estou, está tudo bem. São impecáveis”, garante o aprendiz de carpintaria.

Testes VIH disponíveis nas farmácias

A luta pela qualidade de vida dos doentes com VIH é uma constante e, quanto mais rápido for feito o diagnóstico, melhor é para o doente, sublinha Fátima Lima, médica de família há mais de 30 anos. “Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, mais capacidade temos de iniciar tratamento e de lhes dar qualidade de vida. Relativamente ao facto de agora poderem ser feitos os testes de diagnósticos nas farmácias e nos centros de laboratório, são mais organismos que podem intervir no diagnóstico precoce”, defende a médica.

Recentemente, o governo publicou o despacho que que autoriza a realização de testes rápidos (testes “point of care”) de rastreio de infeções por VIH nas farmácias comunitárias e laboratórios de análises clínicas. A iniciativa tem por objetivo, atingir metas internacionais, no âmbito do programa das Nações Unidas sobre o VIH e Sida (ONUSIDA), explica Ema Paulino, da Ordem dos Farmacêuticos: “São as metas 90-90-90 em que se pretende que 90% da população que vive com o vírus esteja diagnosticada, que, entre aqueles que estão diagnosticados, 90% esteja em tratamento, e, dos que 100% que estão em tratamento, 90% estejam controlados e não apresentem manifestações da doença."

"Estamos convictos que esta possibilidade dada às farmácias e aos laboratórios de análises clínicas e da realização destes testes, possa contribuir para os diagnósticos. Em Espanha, onde já se faz estes testes, 10% das pessoas diagnosticadas em 2016 foram-no nas farmácias. Uma percentagem significativa”, garante Ema Paulino.

Mas quem passou pelo medo de ir fazer o teste desconfia do sigilo de ir a uma farmácia. Marta e Joana [nomes fictícios] estão nestas circunstâncias: "Poucos irão fazer isso. Um toxicodependente jamais se dirigirá a uma farmácia para fazer o teste, vai pensar que vai passar dali. Num hospital, há mais conforto e sigilo. Quase tenho a certeza de que poucos se vão dirigir a um farmácia. É mais provável fazer numa equipa de rua. É difícil entrar numa farmácia, pedir um teste do VIH”, afirma Joana, cuja opinião é partilhada por Marta: “Eu nunca iria a uma farmácia. Não era capaz.”

Ema Paulino, da Ordem dos Farmacêuticos, insiste, contudo, que todos os cuidados estão a ser tomados e a formação dos profissionais começa em Setembro. “É uma formação certificada pela Ordem dos Farmacêuticos e contém cuidados, quer ao nível da realização do próprio teste como ao nível comunicacional, porque estas doenças ainda são encaradas por parte da população como algo estigmatizante e é importante que o farmacêutico esteja preparado para comunicar o resultado”, explica.

“Primeiro vai decorrer a formação dos profissionais e, depois, a implementação, que vai ter em conta questões como manutenção da privacidade, confidencialidade e prevê que o teste possa ser feito de forma anónima”, reforça Ema Paulino.

"Uma pessoa dirige-se à farmácia, pode ou não identificar-se. O teste é feito logo e em poucos minutos sabe-se o resultado. Ainda não sabemos é quanto vai custar, é um serviço que não é suportado pelo Serviço Nacional de Saúde, mas será pago pelo cidadão. Poderá não ter preços semelhantes em todas as farmácias”, conta.

Ema Paulino não tem dúvidas de que a iniciativa será bem aceite por todos, até porque relembra, a representante da Ordem dos Farmacêuticos, está a decorrer com sucesso, um projecto-piloto para a dispensa de medicamentos anti-retrovirais nas farmácias. “O estudo piloto que está a decorrer, nas farmácias da zona de Lisboa que foram convidadas a participar, e neste momento já temos 200 farmácias com farmacêuticos formados para poder fazer essa dispensa, houve logo uma grande adesão”, assegura.

Ainda um tabu

O psicólogo Marco Pereira, que estuda e investiga a doença, não tem dúvidas em afirmar que a SIDA ainda é um tabu. “Ainda é, apesar de ser uma doença com mais de 30 anos de conhecimento", afirma, convicto.

Sobre as causas para esta realidade, o psicólogo aponta "falta de conhecimento ou não-procura ativa de formação", uma vez que a doença "continua associada a grupos marginais, embora segundo os dados nacionais, a maioria dos casos, quase 60%, são diagnosticados em pessoas que referem transmissão heterossexual e não são propriamente outros grupos".

“Cada vez mais, surgem diagnósticos tardios e em idades avançadas, a partir dos 50 anos de idade, idosos”, indica Marco Pereira.

O tabu e o estigma social associados ao VIH já foram sentidos na pele de Luís Simões. “Essa do aperto de mão passou-se comigo. Estive internado e perguntaram-me onde tinha estado e, quando ia para apertar a mão, já não quiseram. 'Deixa lá isso', em pleno séc. XXI. Fiquei de boca aberta, não tive reação nenhuma, cada um tem a sua ignorância”, diz sem, no entanto, desanimar. Aos 53 anos, mantém a atitude positiva perante a vida: ”Não me posso queixar muito, ganhei mais vitórias do que perdi, o que me dá mais ânimo, pelo tempo que tenho pela frente.”

Luís Simões tem um sonho por concretizar. Comprou uma guitarra e gostava que alguém que o ensinasse a tocar tão bem com Joe Satriani. “Em último caso tenho que tentar aprender sozinho, mas é um sonho grande, tocar uma noite com o Joe Satriani”…

De acordo com o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, que divulgou, no final do ano passado, o relatório anual sobre a situação da infeção VIH e SIDA em Portugal, encontram-se registados cumulativamente 56.001 casos de infeção por VIH, dos quais 21.614 de SIDA, em que o diagnóstico aconteceu entre 1983 e final de 2016 e 11.020 óbitos em casos de infeção por VIH, ocorridos no mesmo período.

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