01 jun, 2018
A música de Miguel Araújo interessa-me por três razões. Primeira, ele é do Porto, o que é capaz de ajudar. A atitude sem peneiras está lá, tal como a recusa do embrulho que muitas vezes engana. Não há ali a “persona”, há só um homem que escreve e canta. O que interessa não são os neons e lantejoulas do “artista", mas sim as letras e acordes da música, da arte. Não é um pormenor. Segunda, percebo de imediato o que ele canta. Não me levem a mal. Eu oiço sobretudo música clássica, uma linguagem musical em estado puro e próxima do Verbo, uma linguagem sem os verbos que nós inventámos para nos aproximarmos da verdade. Ora, se vou estar a ouvir músicas com letras, então exijo que as ditas sejam não só audíveis mas também percetíveis. E um dos sarilhos da pop é que uma boa parte das letras não são perceptíveis; não se percebe o que as bandas ou cantores estão a cantar, é preciso ir ler. Miguel Araújo canta para ser ouvido e entendido – parece fácil, mas deve dar um trabalhão. Terceira e mais importante: ele cruza o universal e o particular na dose certa.
Mas repare-se que Araújo não se fica pelo Paraíso. Ele tem coragem para descer ao Inferno. Aliás, fico à espera de um álbum só sobre o cone infernal. A música “meio conto”, por exemplo, diz-me muito. Conta a história do menino de Lisboa, um Jaime do Areeiro ou do Oriente, que se perde na droga, que rouba “autorrádios” para ir comprar “meio conto” ou algo pior. Os leitores mais novos não devem saber o que é um “autorrádio”. Eu explico: quando eu e o Miguel Araújo éramos putos, Portugal sofreu uma das maiores epidemias de droga e sida da Europa (outra história de violência portuguesa que corre o risco de ficar esquecida). Os "agarrados" varriam as ruas armados de navalhas e seringas e roubavam sobretudo os autorrádios dos carros, que, na época, eram portáteis e amovíveis. Toda a gente perdeu um ou mais amigos para esta peçonha. Além da consciência da queda, há em Araújo a consciência da pobreza. Nota-se esta sensibilidade na "Laurinha” que quer ter o título nobiliárquico dos pobres, o “Dona”; nota-se nas meninas da “Via Norte”, que, ao contrário das “donzelas” da “burguesia que devia sair da toca”, não tiveram sorte e ganham a vida encostadas a um pinheiro torto. No fundo, o encanto de Araújo talvez seja este: sente-se Portugal e/ou o Porto nas suas letras; "toda a fauna e toda a flora" estão aqui, desde a "burguesia” de “corpete” que não sabe a sorte que tem quando dá mergulhos na “piscina da estalagem” até à "periferia" do "camionista que desemboca” e que tem uma filha na estrada a dizer adeus à sorte. É um país concreto, pessoal e intransmissível, mas sempre abraçado ao fôlego universal. A “Laurinha” que não gosta da “stôra de história” também não escapa à conspiração Daquele que criou as leis que nos penduram aviões no céu. E que eu morra aqui se também não passei dias a ver os aviões no telhado da madrinha que dava pròs velhos portos do Tejo.