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Apelo do Papa à não resignação

17 mai, 2018 • Opinião de Graça Franco


Pode um cristão estar sossegado com a moralidade dos seus atos, ao mesmo tempo que vende um produto financeiro a um cliente incapaz de avaliar o risco que lhe está associado quando não o alerta para tal?

Os cristãos e homens de boa vontade, sejam eles banqueiros ou bancários, gestores, empresários ou políticos, reguladores, clientes ou consumidores, não podem resignar-se à mera lógica dos “mercados” e devem estar conscientes do efeito do somatório das ações pelas quais cada um deve responsabilizar-se individualmente. Esta é a principal advertência que o texto da Santa Sé, hoje publicado no Vaticano, faz ao analisar, em pormenor, o funcionamento dos mercados financeiros, num passo em muitos aspetos inédito da Doutrina Social da Igreja e que constitui um novo guia para a reflexão de todos sobre a sua quota parte na mudança de mentalidades que se impõe.

Um cristão não pode demitir-se de avaliar a qualidade ética das respetivas ações, quer do ponto de vista individual, quer do ponto de vista das repercussões que essas possam gerar em todo o sistema, em ordem ao “bem comum” nacional e mundial. A compra e venda de títulos da dívida e a especulação com as taxas de juro (como a Libor) ou o recurso aos mecanismos de intermediação financeira em produtos de especial complexidade não são neutras em termos morais e cada um dos seus intervenientes não pode esconder-se por detrás de conceitos como “inevitabilidade” ou incapacidade de sozinho trazer a ética que falta ao chamado mercado.

Pode um cristão estar sossegado com a moralidade dos seus atos, ao mesmo tempo que vende um produto financeiro a um cliente incapaz de avaliar o risco que lhe está associado quando não o alerta para tal? E pode um executivo não se questionar sobre a imoralidade dos seus atos, quando para fazer subir o próprio salário se preocupa com o lucro do acionista e esquece a parte que deveria caber aos outros trabalhadores ou as provisões que garantiriam a solidez futura da empresa? Pode um “gestor de conta” manipular a carteira de poupanças do cliente, assumindo riscos imprudentes para atingir objetivos próprios, considerando essa gestão “amoral”? A resposta deste último documento da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre o funcionamento dos mercados financeiros, é simples e direta: Não.

O texto de 31 páginas hoje divulgado pelo Vaticano e que obteve a chancela do Papa Francisco, sendo particularmente “equilibrado” como em declarações à Renascença considerou o professor João César das Neves, não utiliza, por exemplo, uma única vez a palavra “pecado”. Este documento constitui um passo de gigante no aprofundamento e atualização da Doutrina Social da Igreja, concretizando a reflexão ética que todos os agentes económicos devem efetuar ao participar em ações de compra ou venda de títulos no mercado financeiro ou no negócio de concessão e avaliação do risco de crédito bancário, sobretudo quando se está a falar de maior inovação e criatividade. Mais do que avaliar a simples bondade “técnica” propõe-se sobretudo uma cuidada avaliação ética.

Tal como ainda esta semana propunha a nota da Comissão Nacional Justiça e Paz Portuguesa na sua nota sobre a honestidade, o texto papal vem também lembrar a responsabilização individual de cada agente, seja qual for a sua participação na vida económica. E lembra que cada um pode sempre influir no todo através de escolhas pessoais. Impõe-se, apenas, “não ceder ao cinismo” e não pensar que “com as nossas pobres forças podemos fazer bem pouco”. Sugere-se, por exemplo, que “na gestão das próprias poupanças estas sejam entregues às empresas que operam com critérios claros. inspiradas numa ética respeitosa de todo o homem e de todos os homens”.

A reflexão não se pode ficar, segundo o texto proposto ao Papa (pelos prefeitos para a Doutrina da Fé e Desenvolvimento Humano Integral) ao nível da resposta à questão: isto é lícito e bom para mim? Mas deve estender-se à avaliação ao impacto social de cada ação: isto é lícito e bom para os meus clientes, fornecedores, para o meu país, ou para os outros? Em suma, para o resto do mundo?

Concretizam-se inúmeras situações, rejeitando sempre a hipocrisia dos que se limitam a não cometer “ilegalidades”, mas acabam por funcionar nas margens da lei, de forma a evitar pagar impostos que, desviados do bolo comum da receita fiscal, acabam por prejudicar os mais frágeis da sociedade, impedindo ajudas possíveis ao serviço dos mais pobres.

Embora sem utilizar nunca este termo, o texto apela a uma espécie de “objeção” ou cláusula de consciência de cada operador que queira participar genuinamente não apenas na busca do bem próprio, mas no bem comum a que a sua condição de cristão ou simples homem de boa vontade o chama no exercício da sua atividade profissional enquanto agente de mercado (gestor ou empresário, investidor, etc…). De forma realista não deixa de referir que, nalguns casos, este cumprimento ético pode acarretar uma “menor remuneração”, menor reconhecimento pelos respetivos pares e ou mesmo um travão na progressão da carreira para aqueles que ousam impor esta análise ética aos respetivos procedimentos.

Aconselha-se, por exemplo, a introdução de “Comissões de ética que operem junto dos Conselhos de Administração” dos bancos, para evitar que o cumprimento da legislação se traduza numa visão “negativa” que visa evitar “sanções” com mera obediência formal às normas existentes. O texto sugere como desejável a introdução de “uma cláusula geral que declare ilegítimos, com consequente responsabilização patrimonial de todos os sujeitos imputáveis, aqueles atos cuja finalidade seja de maneira prevalecente a manipulação das normativas vigentes”. Embora mais uma vez evite o uso deste termo, o texto parece aplicar-se a boa parte das atividades do chamado “planeamento fiscal”.

O uso de “off shores” e dos produtos a que chama “finança criativa” (embora reconheça que possam oferecer “também outros serviços lícitos”) é sobretudo visto como suscetível de, na maioria dos casos, levar a situações “de imoralidade próxima ou imediata”, retirando “injustamente a linfa vital da economia real”, dificilmente podendo “encontrar legitimação ética “ou sequer trazer eficiência ao próprio sistema económico.

O texto contesta também a socialização frequente das “perdas” de grandes agentes privados, fazendo recair sobre os contribuintes o que deveria ser suportado pelos próprios agentes responsáveis, em muitos casos “com a conivência dos políticos” e defende a necessidade de uma clara separação entre o poder político e o poder económico na sociedade, evitando as relações promíscuas entre os dois.

Em matéria de dívida considera-se particularmente grave a especulação “contra a dívida de países”, sem considerar o mal que isso pode acarretar aos respetivos povos e defende-se que, nos casos em que a dívida pública dos Estados é detida “por sujeitos cuja consistência económica” permite fazê-lo, se estude a possibilidade da sua redução, para impedir que os países se vejam a braços com espirais de dívida que acabarão por sobrecarregar os cidadãos.

Como vem sendo habitual neste pontificado, mais uma vez se desafiam as escolas económicas a introduzir nos “curricula”, sem carácter marginal, disciplinas de ética e a refletir sobre o teor do documento como um contributo “consciente que não existem receitas económicas válidas sempre e universalmente e que em cada momento, se deve lealmente tomar conhecimento da situação histórica em que vivemos”. É caso para desejar: que assim seja. E que não se volte a perder esta nova oportunidade de rever formas de atuação, mesmo entre cristãos que, por serem demasiado comuns, nem por isso são legitimas.

Como afirmava o texto da CNJP citando a poetiza brasileira Elisa Lucinda na nota sobre honestidade, também o texto papal se pode resumir aos versos: “(…) vou confiar mais e outra vez/Eu, meu irmão, meu filho e meus amigos/vamos pagar limpo a quem a gente deve/E receber limpo do nosso freguês/Com o tempo a gente consegue ser livre, ético (…). Só não nos podemos resignar”.

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  • MASQUEGRACINHA
    18 mai, 2018 TERRADOMEIO 17:11
    Fico contente por a Igreja Católica se ter dedicado, por fim, àquele que é, definitivamente, o problema major contemporâneo, a gangrena da ganância normalizada e institucionalizada, que corrompe a vida de homens e sociedades, e até a própria evolução humana. E, separando as águas, fá-lo bem, com largura, profundidade e detalhe. Sendo evidente que a justeza da abordagem se aplica tanto a cristãos como a "homens de boa vontade", e também que nada traz de especialmente inovador, na análise e nas soluções, ao que tantos economistas e até partidos políticos têm dito, a verdade é que se trata de doutrina da Igreja. Daí que não perceba muito bem porque "não utiliza uma única vez a palavra pecado", ou se isso é sequer factor especialmente positivo. Sem eufemismos, e ainda bem, fala-se de burlar, roubar, abusar, prejudicar, facilitar, encobrir, gerir e legislar em proveito próprio, etc., tudo com dolo. E ainda que aos "homens de boa-vontade" reste apenas a consciência para prestar contas, supunha que aos cristãos acrescesse a noção de pecado - daí serem apresentados cristãos e homens de boa-vontade como distintos destinatários da mesma mensagem. Concluo, pois, que a este notável esforço da Igreja no que respeita ao financeirismo reinante, lhe falta a pedra de toque que lhe daria verdadeira credibilidade. Continuamos no domínio difuso da falta de ética, não no do concreto cristão de pecado, que exige arrependimento e mudança de comportamento. Nada de realmente novo, portanto.