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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Tentar perceber

Um mundo mais dividido

28 abr, 2018 • Francisco Sarsfield Cabral • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


A globalização põe em contacto culturas com valores e práticas muito diferentes. Numa primeira fase, a tendência uniformizadora gera o seu contrário. Mas poderá aproximar essas culturas.

A globalização impulsiona a tendência para uniformizar muita coisa. Há quem se queixe de que as grandes cidades estão cada vez mais parecidas na sua arquitetura, nos seus problemas de tráfico, nas lojas e supermercados, etc. Mas a tendência uniformizadora provoca uma natural reação de sinal contrário: as comunidades procuram reforçar a sua identidade, os seus particularismos. É assim que na Bélgica, berço e centro da integração europeia, há um movimento separatista flamengo, que quer desligar-se da Bélgica francófona. Ou, na Itália, a Liga do Norte nasceu com o projeto de se separar do Sul, criando um país chamado Padânia.

Uma sondagem internacional da Ipsos Mori revela que três quartos dos inquiridos a nível mundial dizem que a sua sociedade está dividida e um terço entende que está muito dividida. A maioria dos inquiridos julga que o seu país está mais polarizado hoje do que há dez anos atrás. A Europa é o continente onde as pessoas acham que as divisões são maiores e mais aumentaram na última década (Portugal não faz parte do grupo de doze países europeus onde foi realizada a sondagem).

É compreensível esta subida do sentimento de divisão na Europa. A imigração colocou muitos países europeus, onde há décadas existia uma cultura praticamente única, face a culturas muito diferentes e frequentemente contrárias a valores e práticas tradicionais na Europa. O que provoca reações de rejeição do outro, do diferente. No caso dos imigrantes islâmicos pesa, ainda, o medo do terrorismo. Acresce, ainda, que a cultura de raiz europeia – que depois se estendeu aos EUA e a muitas outras nações – sente já não ser hoje dominante no mundo, pelo menos no grau em que há um século era. O que acentua os receios.

Estarão, então, o mundo em geral e em particular a Europa, condenados ao “choque de civilizações”? Ou será possível encontrar, pelo menos, meios de convivência pacífica? É um dos grandes problemas do século XXI.

Antigas divisões

Repare-se que esta situação de confronto com o diferente não é inteiramente nova. As mortíferas guerras de religião que se seguiram à Reforma protestante foram uma manifestação de conflitos entre crenças diferentes. Como, em menor grau, tinha sido séculos antes a perseguição aos judeus; no século XVI este foram expulsos de Portugal e Espanha – um erro histórico que prejudicou o desenvolvimento de ambos os países.

Numerosos europeus emigraram para a América, na altura uma colónia britânica, para fugirem às perseguições religiosas. Ainda antes da independência americana foi possível ali um “modus vivendi” que permitia a convivência pacífica de várias confissões cristãs. Convivência que não se estendeu aos índios, que acabariam quase totalmente dizimados, nem aos escravos negros transportados de África.

Com todas as suas limitações, a democracia pluralista foi uma via para que pessoas com valores e conceções de vida diferentes lograssem não andar aos tiros umas às outras. Mas hoje a democracia pluralista tem dificuldades óbvias em abranger quem não preza a liberdade individual e envereda por fundamentalismos por vezes assassinos. O individualismo liberal lida mal com comunidades culturais e religiosas muito diversas. É preciso, embora nada fácil, construir a paz entre essas comunidades.

Limitações da tolerância

Cada um de nós é, em parte, fruto da comunidade onde nasceu e viveu, sobretudo nos anos de formação. Por isso, respeitar a identidade das pessoas implica respeitar a sua cultura. Daí nasceu o multiculturalismo, hoje em grande parte desacreditado. E desacreditado porque não foi capaz de reconhecer os seus limites. Por outras palavras, o respeito por culturas diferentes não pode significar a aceitação de todas os valores e práticas dessas culturas – como seja a subordinação das mulheres aos homens ou a excisão genital feminina. A tolerância tem necessariamente limites.

As relações do Ocidente com a China, que se desejam pacíficas, não podem ir ao ponto de aceitarmos a ideia dos dirigentes chineses de que os direitos humanos são uma mera invenção ocidental, alheia à cultura chinesa. Enquanto a guerra fria punha em confronto duas conceções opostas da vida política, social e económica, mas que tinham uma raiz europeia comum (Marx era alemão…), com a China as divisões são bem mais radicais. Mas não esqueçamos que o acordo sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, obtido na ONU em 1948, apenas foi possível depois de os negociadores terem desistido de fundamentar com argumentos racionais esses direitos – porque eram muito diferentes as fundamentações que apresentavam.

A globalização reacende tendências de reforço identitário, como referido acima. Mas também põe em contacto culturas diferentes, que antes se ignoravam mutuamente. O previsto encontro entre Trump e Kim Jong Un é exemplo simbólico desse contacto. Poderá a cimeira saldar-se por um fracasso. Mas, pelo menos, as pessoas encontram-se e começam a dar-se conta da maneira de pensar dos outros. O que, a prazo, permitirá aproximar pontos de vista agora totalmente opostos, embora numa primeira fase reforce os particularismos. Sem ilusões utópicas, é pelo menos um caminho a explorar.

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  • Mario
    28 abr, 2018 lisboa 15:56
    As diversas culturas levaram milénios a ser construídas e nâo há forma de a curto ou longo prazo criar uma civilização única,penso inclusive ser utopia.A convivência entre países de culturas diferentes é possível a multicultura é impossível embora tolerada e com reservas pela ligação ao trabalho,legislaçao ,etc.