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Luís António Santos
Opinião de Luís António Santos
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Opinião

Brasil - quem "segura esse rojão"?

09 abr, 2018 • Opinião de Luís António Santos


A esse propósito, escreveu há dias o antropólogo social argentino, Alejandro Grimson: “De todas as possibilidades que o Brasil tinha nessa altura só uma era absurda - o início da auto-destruição do país”.

A prisão efetiva de Lula da Silva, com a execução de uma pena antes mesmo de esgotado o direito ao recurso, é o exemplo acabado de uma deriva à qual o Brasil se entregou sem tino depois de a maioria da população ter percebido que o seu sistema político está, no essencial, podre. É uma deriva que terá começado há uns anos atrás, quando a reeleição de Dilma Roussef expôs fraturas políticas e sociais e agitou rancores antigos que muitos julgariam extintos.

A esse propósito, escreveu há dias o antropólogo social argentino, Alejandro Grimson: “De todas as possibilidades que o Brasil tinha nessa altura só uma era absurda - o início da auto-destruição do país”. Mas foi essa a escolhida por uma classe política cheia de medo de perder privilégios e benesses, entalada por escândalos de corrupção e, sobretudo, incomodada com as políticas de ‘elevador social’ que transformaram a vida de milhões de brasileiros pobres e permitiram - para usar uma imagem simplista - ‘ver a filha da empregada doméstica na universidade’. Descredibilizada e fragilizada a estrutura de governo encolheu-se numa concha (fina, muito fina) e deixou o campo aberto a outros poderes, como o militar e o judicial.

A gradual militarização de uma cidade tão vital como o Rio de Janeiro é apresentada como uma resposta ao aumento da violência, mas é, sobretudo, o retomar de uma ideia velha de organização social mantida pela força; os pobres, de novo, ‘lá onde devem estar’, cercados de viaturas militares, cobertos pela suspeita de criminalidade e, tanto quanto possível, impedidos de mudar de vida.

A politização da Justiça , apresentada como um sinal de ‘limpeza’, é o exemplo do pior que pode acontecer quando um sistema arcaico entra em roda livre. Num enquadramento em que o mesmo juiz pode elaborar a acusação e julgar o caso (algo impensável – e bem – por cá) há ainda espaço para a delação premiada e é também permitido a esse mesmo juiz falar e escrever sobre os processos que tem em mãos. Na ausência do poder político, uma figura com uma agenda e com uma extraordinária sede de protagonismo como o juiz Sérgio Moro consegue usar sem controle todas estas ferramentas e consegue num emblemático caso dar-nos uma imagem clara do caminho trágico que o país percorreu num tão breve espaço de tempo.

O Brasil de hoje faz lembrar o operário da música de Chico Buarque: “E tropeçou no céu como se ouvisse música / E flutuou no ar como se fosse sábado / E se acabou no chão feito um pacote tímido / Agonizou no meio do passeio náufrago / Morreu na contramão atrapalhando o público”. E não há, tão cedo pelo menos, beleza poética que o salve.

Comentários
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  • Para refletir...
    10 abr, 2018 Almada 11:08
    Não compreendo esta frase: "A prisão efetiva de Lula da Silva, com a execução de uma pena antes mesmo de esgotado o direito ao recurso, é o exemplo acabado de uma deriva à qual o Brasil se entregou sem tino depois de a maioria da população ter percebido que o seu sistema político está, no essencial, podre." Junta na mesma frase a justiça e a política, começa por criticar a justiça a acaba acusando a política. É de facto grave que Lula tenha sido preso antes de se esgotaram todos os recursos, mas a grande culpa é da justiça. É também da política porque se cala, mas parece ser um tradição errada e grave a política calar-se a tudo o que a justiça faz. Numa ditadura é que não se pode criticar o poder. Também não compreendo porque razão acha errado um juiz falar sobre os processos que tem em mãos, errado e grave é haver opacidade. Segundo a imprensa um juiz falou e disse: "O juiz do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, citado pela "Folha de São Paulo", diz que a "prisão de Lula é absurda, fruto do autoritarismo desse punitivismo processual hoje em voga no país. Os recursos ainda não se esgotaram e já se precipita a prisão!". Como vê ainda bem que ele falou. Eu só sei fazer perguntas simples, quem verifica se a justiça cumpre a lei?
  • MASQUEGRACINHA
    09 abr, 2018 TERRADOMEIO 16:02
    Gostei muito do artigo. E gostaria de deixar uma questão: até que ponto seria possível o "milagre socioeconómico" de Lula (elevador social, sim, mas também a pura e simples fome saciada de milhões de brasileiros), se não foram os "mensalões", as alianças com episcopados duvidosos, o assobio para o lado nos enredos de agro-negócios, petro-negócios, construtoras? É certo que o poder corrompe, sempre. Mas em que medida seria possível atingir os fins que foram, sem dúvida, atingidos, sem pactuar com os meios, a realidade concreta, o tal "sistema arcaico"? Sem pôr a mesa ao rico, ao ganacioso e ao corrupto, como sobrariam migalhas para alimentar os lázaros? Não me parece que fosse possível em medida nenhuma, a não ser recorrendo à violência - por isso, no passado, foram necessárias revoluções, e sempre violentas, para que os "sistemas arcaicos" deixassem cair umas migalhas da mesa, ou até permitissem que os lázaros também abancassem. Não sei se os fins justificam os meios, sejam estes a violência ou o pactuar com a realidade estabelecida, para tornar a vida menos irracional. O que vejo, pelo claro exemplo do Brasil e não só, que há muitos e sem grandes subtilezas, é que não parecem existir grandes alternativas para produzir mudança. Quanto ao juiz Moro, veremos quanto tempo demorará a decompor-se por entre os miasmas do poder.