27 fev, 2018
Este ano a Quaresma dos cristãos começou a 14 de fevereiro, o dia que o retalho publicita como dos namorados, invocando um tal S. Valentim de traço eclesial custosamente identificável. Não resulta antipático receber uma lembrança comemorativa ou estimular o palato com as delícias do sempre invocado chocolate. É um prazer, por certo. Mas um prazer que, este ano, procurei que não conflituasse com uma celebração que aguardo com entusiasmo e sempre me faz bem: o despojamento, a pequenez humana, a humildade das Cinzas.
Esta pequena dissonância de calendário lembrou-me que, há cerca de um ano, pela Páscoa, alguns leitores tiveram a paciência – que agradeço – de assinalar um texto meu. Falava eu da felicidade, em termos que esses leitores consideraram, de algum modo, impróprios. Dito texto, motivado pelo Tempo cristão e a leitura de Pablo D'Ors facultada por um amigo, sugeria a possibilidade da felicidade em tempos de dor.
Mas, é certo, embora talvez não tenha sido claro, que não desejo aproximar a busca da verdade ou da realização com a provocação da dor. Esta é uma questão matricial e identitária que não se revê no meu credo nem nos manuais de estudo da minha disciplina. Amo a felicidade. No entanto, também não amo todos os caminhos nem todas as receitas para a busca da felicidade: porque são perigosos e irresponsáveis, porque são egoístas e violentos, porque são ilusórios, irrelevantes, destrutivos, irracionais.
D'Ors, escritor e sacerdote, depois de uma etapa vital de grande fracasso, descobriu que desejava promover na Cidade um espaço de busca da felicidade que poderia ser um bom regalo para os dias dos namorados, e dos amantes, dos casais e dos que, simplesmente, estão/são enamorados da vida. Amar a vida é uma atividade complexa e arriscada, que obriga a não ignorar ou olvidar quanto nos testa, nos põe em causa: quantas vezes estria os nossos sonhos, desafia os nossos limites, desconstrói o nosso conforto. A vida tem uma densa componente de sofrimento que não é apagável nem amável mas que pode ser superada, integrada numa “vida nova” de maturidade, coragem e reapropriação da realidade. Nem sempre essa integração é perfeita, ou total, porque todos nós somos limitados e imperfeitos, cheios de vazios por preencher, dados aos destroços e às ilusões. Mas é essa boa fragilidade que nos permite ser plásticos, dinâmicos, fecundos e ousados. Os seguidores do Cristo – com quem me identifico – dizem, sem empolamentos desnecessários, que são pobres em méritos e pecadores reincidentes, e há já nessa assunção um princípio libertador que invoca os recomeços e os arrependimentos que precedem a renovação, o princípio emancipador de saberem quem são, de se aceitarem e desejarem ser uma pessoa melhor.