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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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​Do silêncio e do entusiasmo

27 fev, 2018 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Amo a felicidade. No entanto, também não amo todos os caminhos nem todas as receitas para a busca da felicidade.

Este ano a Quaresma dos cristãos começou a 14 de fevereiro, o dia que o retalho publicita como dos namorados, invocando um tal S. Valentim de traço eclesial custosamente identificável. Não resulta antipático receber uma lembrança comemorativa ou estimular o palato com as delícias do sempre invocado chocolate. É um prazer, por certo. Mas um prazer que, este ano, procurei que não conflituasse com uma celebração que aguardo com entusiasmo e sempre me faz bem: o despojamento, a pequenez humana, a humildade das Cinzas.

Esta pequena dissonância de calendário lembrou-me que, há cerca de um ano, pela Páscoa, alguns leitores tiveram a paciência – que agradeço – de assinalar um texto meu. Falava eu da felicidade, em termos que esses leitores consideraram, de algum modo, impróprios. Dito texto, motivado pelo Tempo cristão e a leitura de Pablo D'Ors facultada por um amigo, sugeria a possibilidade da felicidade em tempos de dor.

Mas, é certo, embora talvez não tenha sido claro, que não desejo aproximar a busca da verdade ou da realização com a provocação da dor. Esta é uma questão matricial e identitária que não se revê no meu credo nem nos manuais de estudo da minha disciplina. Amo a felicidade. No entanto, também não amo todos os caminhos nem todas as receitas para a busca da felicidade: porque são perigosos e irresponsáveis, porque são egoístas e violentos, porque são ilusórios, irrelevantes, destrutivos, irracionais.

D'Ors, escritor e sacerdote, depois de uma etapa vital de grande fracasso, descobriu que desejava promover na Cidade um espaço de busca da felicidade que poderia ser um bom regalo para os dias dos namorados, e dos amantes, dos casais e dos que, simplesmente, estão/são enamorados da vida. Amar a vida é uma atividade complexa e arriscada, que obriga a não ignorar ou olvidar quanto nos testa, nos põe em causa: quantas vezes estria os nossos sonhos, desafia os nossos limites, desconstrói o nosso conforto. A vida tem uma densa componente de sofrimento que não é apagável nem amável mas que pode ser superada, integrada numa “vida nova” de maturidade, coragem e reapropriação da realidade. Nem sempre essa integração é perfeita, ou total, porque todos nós somos limitados e imperfeitos, cheios de vazios por preencher, dados aos destroços e às ilusões. Mas é essa boa fragilidade que nos permite ser plásticos, dinâmicos, fecundos e ousados. Os seguidores do Cristo – com quem me identifico – dizem, sem empolamentos desnecessários, que são pobres em méritos e pecadores reincidentes, e há já nessa assunção um princípio libertador que invoca os recomeços e os arrependimentos que precedem a renovação, o princípio emancipador de saberem quem são, de se aceitarem e desejarem ser uma pessoa melhor.

Ora, D'Ors, disso muito conhecedor, criou espaços de silêncio e experiências de aprendizagem para aqueles que desejam reaprender a viver sem a proteção do ruído e dos anseios «de coisas»: Amigos do Deserto, sem gadgets, sem redes sociais, sem rede mas a mais valia do encontro. Esses espaços/tempos de mosteiro interior ambicionam conduzir a pessoa ao centro de si, aos seus conflitos, às suas frustrações e a todas aquelas coisas que nos doem e que não se resolvem com corações vermelhos ou chocolates. Não é possível descartar o sofrimento da nossa vida e, às vezes, este é dilacerantemente forte e constante, insuportável e absorvente. Mas também a negação do silêncio, esse lugar psicológico onde nos encontramos com a consciência, é uma atitude masoquista. Para encontrar a felicidade precisamos de determinar se o que queremos e o que fazemos é prazer ou alegria, serviço ou poder, delírio ou imaginação, impaciência ou criatividade, uso ou entrega. À medida de cada um, podemos descobrir as razões de uma vida transtornada que se deixa transformar, suficientemente livres e lúcidos para podermos cultivar o sentimento de paz a que os adultos chamamos felicidade. E nesse caminho descobriremos o incomensurável valor do amor que se nos devolve, subtilmente, substancialmente, muito baixinho, para nos obrigar a estar com atenção e a não nos deixarmos submeter às tensões e às tentações do rápido e do fácil. É o dom de recuperar o silêncio que vela por nós. No seu último livro, D’Ors chamou-lhe “Entusiasmo”.
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