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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Passos Coelho: um pró-memória

21 fev, 2018 • Opinião de José Miguel Sardica


Governou num tempo em que a política não pôde ser a arte do possível e do desejável, mas a crua realidade inevitável do necessário.

Caiu o pano sobre o homem que mais tempo liderou o PSD depois de Cavaco Silva. Para Pedro Passos Coelho, pode ter sido a despedida ou o princípio de um pousio que o trará de volta. Nem o próprio sabe. Resta por ora o passado. Só a distância temporal ajudará a avaliar o que foi afinal o “passismo” e o governo de 2011-15.

A pós-verdade, as “fake news” e a espuma mediática não gostam destas revisitações – mas elas são úteis. Passos Coelho nunca teve boa imprensa: foi sempre subestimado na ascensão, denegrido no poder e diabolizado pelo governo que lhe sucedeu, que terá agora que inventar outro “espetro reacionário” para manter unida a geringonça.

Na narrativa mediática, Passos era neoliberal e austeritário, subserviente na Europa e insensível para com os portugueses, que castigava fiscalmente, recomendando que deixassem de ser piegas. Sem concessões ao soundbyte afetuoso, Passos teria destruído o país, semeado a pobreza, multiplicado a emigração e aumentado até os suicídios. Depois dele, veio então a descompressão, a simpatia, as reversões, a abundância e a felicidade… Não sou militante do PSD e não escrevo para o justificar, apenas para lembrar alguns factos – de conjuntura e de estrutura.

Quanto à conjuntura, constatar que em 2011 o país estava de facto à beira do desastre é o melhor caminho para entender a substância da governação de Passos, mesmo que algum discurso e medidas concretas possam merecer críticas. Em março/abril desse ano, quando a governação socialista implodiu, o défice estava em 10%, os juros da dívida já excediam 7%, e esta dobrara de c. 90 mil milhões € para c. 174 mil milhões € desde 2005. Mesmo que não proclamada, a bancarrota era real. Sócrates já inaugurara a austeridade com os PECs 1, 2 e 3, não chegando ao PEC 4 porque a emergência nacional obrigou a chamar a troika. Não foi Passos que inventou o Memorando de assistência externa que, duríssimo, era o programa de governo oficioso de qualquer futuro governo oficial. Sem se perceber isto – e isto são factos – ficará sempre desfocada a imagem do que se passou em Portugal a partir de 2011.

Passos governou num tempo em que a política não pôde ser a arte do possível e do desejável, mas a crua realidade inevitável do necessário: fazer o que era preciso fazer, porque era preciso fazê-lo, em regime de emergência nacional. Não reconhecer isto é má-fé política. E se é um facto que a austeridade cresceu até 2013, desacelerou em 2014 e inverteu de 2014 para 2015, quando o défice fechou em 4,5% e os juros da dívida se negociavam a 1,5%. No programa eleitoral da PàF (PSD-CDS), em 2015, estabelecia-se já um calendário para o desmantelamento da austeridade, com recuperação de rendimentos e emprego e com redução da carga fiscal até 2019.

Quando a estrutura – na maior duração temporal – a história registará um dia que o “austeritarismo” de Passos não foi a escolha sádica de um obcecado, que se abateu sobre os portugueses. O cinto apertou, sem dúvida, mas sobre uma “tanga” já muito esfiada, porque outra das duras verdades que os otimistas irritantes não querem ver é que a troika, que tanto condicionou o “passismo”, não foi a causa dos nossos males, mas a consequência de despesismos crónicos e de crescimento quase nulo desde o ocaso do guterrismo. E os bons números mais recentes que bafejam Costa teriam bafejado Passos, se o vencido em 2015 tivesse respeitado as tradições constitucionais. Com a Europa gripada e herdando um país falido, o “passismo” teve de ir ao fundo do poço; e é o poço, que no fundo continua a existir, e não Passos, o nosso problema. Mas quem é que gosta de lembrar a doença, quando hoje só se celebra a (suposta) saúde?

Comentários
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  • Diogo
    21 fev, 2018 Pinto 19:20
    Este comentário devia ser de leitura obrigatória para todos aqueles que tem direito de voto e que tão obstinadamente e mal educadamente exigem um pedido de desculpas ao anterior governo devido às suas politicas de austeridade , do roubo de rendimentos aos portugueses e do aumento da taxa de desemprego . Quando á oposição se deixa vencer pelo argumento irrealista não se pode esperar grande coisa no que toca à governação . Tenho pena de ser obrigado á viver o presente sobre uma doutrina centro-esquerdista cega na qual á figura da justiça é tomada cada vez mais por uma cruz de pau .
  • António Albergaria
    21 fev, 2018 V. N. de Gaia 17:16
    Ora bolas MASQUEGRACINHA
  • MASQUEGRACINHA
    21 fev, 2018 TERRADOMEIO 15:46
    Tradições constitucionais????!!!!! Como dizia a minha avó, "se há coisa que nunca é tarde demais para mudar são os maus hábitos". Aliás, tanto quanto percebi, até o CDS se baba na expectativa de pagar na mesma moeda se, e assim que, tiver oportunidade. Portanto, ou assistimos ao nascimento de uma nova "tradição constitucional", baseada em contas escorreitas e não em acordos de cavalheiros de indústria partidária, ou ao puro e simples fim de um mau hábito. Tem razão o articulista quando diz que P. Coelho fez o que podia face à situação - só que não era necessária a alegre truculência com que o fez, nem é negligenciável a radical mudança de discurso logo após conquistado o poder. Depois, parece-me legítima a dúvida sobre os métodos para angariar (pouco) dinheiro, com privatizações imbecis e quase criminosas, a roçar o lesa-pátria - nem quero pensar no que poderia ter acontecido se continuasse com as mãos na massa, já devíamos ter o ibero-castelhano como língua oficial. Em conclusão, numa coisa P. Coelho foi clarividente e honesto: ao assumir que o PSD é um partido de direita, heterodoxa e modernaça ao estilo Ferraz da Costa, que acredita que o mercado se move pelas leis da oferta e da oferta. Uma vez que o lugar de terceira-via está, de há muito, ocupado pelo PS, não há ideologia social-democrata que convença ninguém. Logo, o melhor é saírem do armário. Ou saltarem da cartola, como o Coelho.
  • Filipe
    21 fev, 2018 Lisboa 14:17
    «Não sou militante do PSD...» Estas são as «Famous Last Words» de José Miguel Sardica, extraordinário escritor de opiniões políticas que nunca teceu nenhuma crítica a Pedro Passos Coelho, quando este foi governo.
  • João Lopes
    21 fev, 2018 Viseu 08:29
    Excelente análise de JMS: «Passos Coelho nunca teve boa imprensa: foi sempre subestimado na ascensão, denegrido no poder e diabolizado pelo governo que lhe sucedeu, que terá agora que inventar outro “espetro reacionário” para manter unida a geringonça…a troika, que tanto condicionou o “passismo”, não foi a causa dos nossos males, mas a consequência de despesismos crónicos e de crescimento quase nulo desde o ocaso do guterrismo».