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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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Quando crescer quero ser uma Kardashian

23 jan, 2018 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Há males que vêm por bem e um programa de televisão é um pretexto suficientemente bom para discutir – de novo – os direitos das crianças ou, mais latamente, o direito a viver uma infância enquanto se tem idade para tal.

Esta questão não é nova e, mesmo que nos centremos nas sociedades afluentes e discursemos sobre uma pretensa classe média (que parece já estar em vias de extinção) para evitarmos complexificar o problema, já de si eivado de muitas variáveis complexas, não é com meia dúzia de opiniões bem intencionadas que algo vai mudar. Mas deveria mudar. Acontece que a crise económica da última década aprofundou os problemas, as fragilidades e os vícios que circundam as infâncias do nosso belo ocidente iluminado.

Por um lado, vitimando os mais pequenos com os custos económicos e sociais da precariedade do trabalho, da fragilização da família, da falta de horizontes e a escassez de valores dos adultos (valores esses que, dantes, constituíam essa tal classe média). Por outro lado, porque as respostas necessárias à ultrapassagem da crise também abalroaram os cidadãos mais fracos e mais pequenos, nomeadamente roubando tempo à infância: agora há quem acredite que uma criança de seis ou sete anos já tem sinais de adolescência só porque os gigantes do retalho compreenderam que uma mãe pode não comprar para si mesma mas lutará até à fome para vestir a sua pequena filha com as roupas do desejo adulto, ou passará uma fome efetiva para lhe colocar um telefone ou um computador – sem qualquer sombra de vigilância – nas mãos. Ou então, porque o cuidado de um filho é comparado aos desejos e às necessidades de um animal de estimação: há dias contava-me uma colega que viu sair de um prédio um jovem casal que levava a filha bebé e o cão vestidos de idêntica maneira.

Finalmente, a maravilha da escola a tempo inteiro caminha para se tornar uma espécie de prisão a céu fechado, sem condições de habitabilidade, sem vigilância nos recreios, sem brinquedos, sem jogos, sem tempo livre para se aprender a ser, ou seja, uma máquina que promove o stress infantil e alimenta as filas de espera do atendimento psicológico e psiquiátrico, desnecessariamente vitimando professores e alunos.

Depois, há toda uma mudança cultural em torno da imagem de si que têm os adultos, quando o “ser” se transformou em “aparecer”, enriquecendo, uma vez mais, os quadros de referência em diagnóstico da doença mental. O problema já de si seria grave – quantas novas adições, quantos casos sérios de obsessão e de depressão – mas transforma-se numa violenta violação dos direitos das crianças quando os responsáveis legais pensam que não há qualquer problema em envolver as crianças que lhes estão confiadas nesse tipo de comportamento. É evidente que, quase sempre, as crianças – em fotos, em filmes, em programas de talentos, em reality shows – produzem um produto de entretenimento gracioso, divertido, amoroso, isto é, vendem muito bem. Mas mesmo que nos fiquemos pelas pequenas estrelas de cinema, que pela longevidade já nos podem dar amplo material de análise, quantas tiveram a oportunidade de um crescimento são e equilibrado e, até, se transformaram em performers adultos de sucesso e pessoas produtivas e confiantes?

Quanto ao programa de televisão de que se faz publicidade gratuita e a SIC agradece, das duas uma: ou seria uma abordagem real da vida real das crianças e, então, estas estariam a ser bestialmente exploradas na exposição do seu sofrimento, uma experiência degradante majorada pela presença de um técnico de saúde mental, embora rotulado de forma mais amena e irresponsabilizante; ou então, trata-se de mais um programa realizado como uma filmagem continuada de comportamentos espontâneos registados num contexto de intimidada mas que é, afinal, a rodagem de um enredo que usa as técnicas da reportagem conjugada com a encenação de um guião bastante simplório, onde até o técnico representa um papel.

Seja como for, é legal e é de mau gosto e um caso típico de desvario pelas audiências. Sou uma defensora antiga – e não muito bem-sucedida – da educação parental mas tenho consciência estatística de que um trabalho sério nesse segmento não alicia anunciantes. Mas deveria ser um esforço da televisão pública. Um pequeno canal suportado por um estado autonómico, como é o Canal Galicia, propõe formatos extremamente bem feitos e úteis nesse campo, é só dar uma olhada: mas não se espere nada de tão empolgante como a vida “íntima” – e o negócio milionário – das manas Kardashian, mestras encartadas na produção dos bonecos mais rentáveis. Eu prefiro os Marretas.

Comentários
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  • Eduardo
    23 jan, 2018 Faro 11:23
    Muito boa análise