12 jan, 2018
Meu caro amigo,
Vivemos tempos de mudança e essa mudança passará sobretudo por si, pai de filhos, filhos rapazes, os homens do futuro. Vou tentar explicar porquê.
O movimento #MeToo tornou-se imparável e a sua principal consequência será a revisão dos códigos morais e sexuais que herdámos da revolução sexual dos anos 60. Não por acaso, o contra-manifesto Deneuve é um estertor assustado do Maio de 68. O que assusta Deneuve é o regresso de um módico de pudor que a cultura soixante-huitard julgava banido para sempre.
Como já defendi aqui várias vezes, a revolução sexual do Maio de 68 só beneficiou os códigos marialvas do passado. Weinstein, Polanski e todos estes predadores foram e são legitimados por esse código que aproximou o sexo da pornografia, afastando-o do pudor e do erotismo. Sim, meu caro, pudor e erotismo convivem na mesma frase. Aliás, o segundo nasce do primeiro. Como explica Vargas Llosa em “Os Cadernos de Dom Rigoberto”, só há erotismo onde há pudor, recato, respeito, algo para ir descobrindo. “Pudor” não significa a recusa do sexo; significa apenas que a sociedade filtra e civiliza os impulsos sexuais. Não somos macacos à deriva num universo darwinista; não somos meros recipientes ou tubagens de fluxos químicos. Neste sentido, um dos livros mais iconoclastas da Bíblia, Cântico dos Cânticos, volta a ser fundamental: não nega o desejo, procura apenas colocar esse desejo no sítio certo – o amor e o respeito entre duas pessoas.
É fundamental atacar a contra-cultura dos anos 60 que entretanto se transformou no mainstream cultural. No entanto, esse ataque não pode originar um regresso simples ao “antigamente”. Nem 8 nem 80. Se esta espécie de darwinismo sexual não é solução, o regresso à hipocrisia vitoriana também não é caminho.
A nova educação moral e sexual que inevitavelmente vai surgir, o novo protocolo (para usar os termos de Tom Hanks), não poderá ser uma réplica da velha moral destruída pelos anos 60. Até porque essa velha mundividência conduz-nos ao erro que tudo inquina à partida: centra as atenções na mulher, quando na verdade o problema está no homem. A agressão sexual é 99% masculina, meu caro. Em consequência, há que combater o impulso que liga o pudor à educação moral da rapariga e não à educação do rapaz.
Repare no seguinte: dizemos à rapariga que tem de cruzar as pernas, que não pode abusar no decote e na saia, que tem de ter cuidado, que não se pode expressar através do corpo, mas, ao mesmo tempo, não dizemos nada aos rapazes. Os rapazes são donos do seu corpo, as raparigas não. O corpo das raparigas está sempre em hasta pública. É assim que elas desenvolvem – desde a infância – a ideia de que a culpa é feminina; façam o que fizerem, vistam o que vestirem, digam o que disserem, ficam sempre com ideia de que foram abusadas porque não tiveram cuidado. Por outras palavras, o rapaz e o homem são vistos como seres inimputáveis, quais crianças grandes que não conseguem controlar os seus impulsos, coitadinhos. Este pressuposto moral que inoculamos nas nossas crianças desde a infância tem de ser combatido. E aqui você tem a palavra chave. Vai rever a forma como educa os seus rapazes? Vai continuar a incentivar directa ou indirectamente os tiques e a “heroicidade” do garanhão que papa as meninas todas para grande orgulho do papá?
Sim, meu caro, claro que quero educar as minhas filhas num módico de respeito. Elas também fazem parte da equação. O que se passa com as raparigas assusta-me: a hiper-sexualização logo aos 12, 13, 14 anos; ainda há dias, um amigo fotógrafo confessava, chocado, numa rede social que recebe cada vez mais pedidos para fazer portfolios provocantes de raparigas menores. No entanto, meu caro, o problema central não é a rapariga. É o rapaz, é o homem. O problema não é o corpo vestido ou tapado da rapariga, é a cabeça do rapaz e do homem. No passado, nas sociedades ocidentais, as mulheres andavam tapadas, mas isso não impedia o abuso sistemático. No presente, nas sociedades muçulmanas, as mulheres andam tapadíssimas e, no entanto, são abusadas na mesma. Por outras palavras, eu até posso educar as minhas filhas na sexualidade cristã (Cântico dos Cânticos) mas nada mudará se você deixar os seus rapazes na sexualidade ancorada em Larry Flynt ou no marialvismo tão português. O papel central é seu. Insisto nisto, porque pressinto que este tema interessa apenas àqueles que têm filhas. Posso estar a ser injusto, mas pressinto que os pais que têm filhos continuam a encolher os ombros.
Não, não encolha os ombros, por favor. Não se vá já embora, continue a ler, tente responder comigo a estas perguntas: porque é que educamos as raparigas para desejar o casamento mas não fazemos o mesmo com os rapazes? Porque é que olhamos com censura para a jovem mulher que escolhe não ter filhos quando em simultâneo olhamos com naturalidade para o jovem homem que faz a mesma escolha? Porque é que ela é “egoísta” enquanto ele é um “Dom Juan”? Porque é que a virgindade numa rapariga é sinal de “pureza” enquanto que no rapaz é sinal de “aselhice”? Porque é que o rapaz que escolhe perder a virgindade apenas com a rapariga que ama há-de ser visto como um “aselha” ou “totó”? Porque é que não pode ser visto como alguém puro, tão puro como a rapariga? E, como diz Chimamanda Ngozi Adichie, porque é que a frase “eu sacrifiquei-me em nome do casamento” significa coisas diferentes para homens e mulheres? Para ela, significa mesmo um sacrifício: deixar o emprego, desistir da promoção, abandonar um sonho. Para ele, significa deixar de fazer coisas que não devia fazer à partida: amantes, copos, não cuidar das crianças, chegar a casa tarde, não sacrificar a carreira e os sonhos pela família.
No fundo, a perplexidade que quero partilhar consigo é esta: porque é que eu educo as minhas filhas para o “compromisso” enquanto você educa os seus filhos para o “empreendedorismo”, para o “risco”, para o “sonho”? Porque é que a ideia de renúncia que está na base do compromisso que é a família e o casamento está sobretudo associado à educação das minhas filhas e não à educação dos seus filhos?
Cumprimentos,
Henrique R.