Se temos um SNS, porque não um Serviço Nacional de Habitação?

O direito à habitação está previsto na Constituição, mas o parque habitacional do Estado é de apenas 2%. Nos últimos 30 anos, foram dados mais benefícios a quem compra casa do que a quem arrenda. “O casamento entre políticas de planeamento urbano e políticas de habitação é praticamente inexistente”, diz Sónia Alves, investigadora do ICS de Lisboa. Filipa Roseta, arquiteta e deputada do PSD, defende que o Estado devia apostar na reabilitação de edifícios devolutos. O Movimento Habitação Hoje! defende que o Programa de Arrendamento Acessível (PAA) é uma “mentira” e tem múltiplas falhas. A habitação é, a par com a saúde, uma prioridade do PRR, cuja aprovação pela Comissão Europeia é formalizada esta quarta-feira com a visita da presidente Ursula von der Leyen a Portugal

16 jun, 2021 - 07:00 • Fábio Monteiro



Foto: Mário Cruz/Lusa
Foto: Mário Cruz/Lusa

Casa: há quem lhe chame lar, num sentido íntimo; em alguns registos fiscais aparece como residência e no discurso político é chamada, de forma ascética, de habitação. Talvez nenhum bem seja mais definidor do orçamento familiar ou individual, e, por consequência, da capacidade de emancipação social. Só que ter casa – seja própria ou arrendada - não é apenas possuir um bem, mas um direito.

O 65.º artigo da Constituição Portuguesa é explícito: “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” Aliás, tal como estipula o 64.º artigo da Constituição, sobre o acesso aos cuidados de Saúde, que indica que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) deverá ser “tendencialmente gratuito”, o terceiro ponto, do artigo relativo à habitação, estipula que o “Estado adotará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria.”

Se esta é a lei, por que é que Portugal não tem um Serviço Nacional de Habitação? E por que é que o parque habitacional que pertence ao Estado é tão reduzido, por comparação com alguns países nórdicos?

A Dinamarca, que tem apenas cinco milhões de habitantes, tem cerca 600 mil fogos de habitação sem fins lucrativos (21% do total); casas que pertencem ao Estado e cujas rendas são reguladas não tendo por base os preços médios do mercado privado, como acontece com o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), mas pelo valor dos rendimentos das famílias. Enquanto isto, em Portugal, com o dobro da população da Dinamarca, o "stock" de habitação social é de apenas 120 mil fogos (2% do total).

Estes números dizem muito sobre “as políticas que desenvolvemos nas décadas passadas”, frisa Sónia Alves, investigadora do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa, à Renascença. “O facto de não termos um setor não lucrativo, como existe no setor da saúde ou na educação, no caso da habitação. O facto de não se construir através de associações sem fins lucrativos, como se verifica na Dinamarca, a preço de custo para arrendamento e que fica perpetuamente disponível às famílias, explica a baixa percentagem que temos no setor do arrendamento”, afirma.

Os governos de vários países perceberam a importância de ter “mercados de habitação equilibrados, do ponto de vista da compra e do arrendamento, porque existe uma população que precisa de se mexer, de estar móvel” – famílias de rendimento baixo, jovens, pessoas que mudam de cidade.

Parte do problema é a habitação servir “para estacionar dinheiro”, nota Bernardo Alves, 25 anos, representante do Movimento Habitação Hoje!, à Renascença. Há décadas que os portugueses, em vez de terem as poupanças no banco, preferem “tê-las num T3”. “E esse T3 tanto lhes faz que esteja vazio, que esteja ocupado, que esteja um sem abrigo a dormir à porta.”

“A moralidade da pessoa que tem o apartamento obviamente que podemos questioná-la, mas na verdade isso não interessa muito. Interessa é que o Estado, com uma Constituição, que diz no artigo 65.º que a habitação é um direito, olhe para um devoluto fechado há 50, 60 anos e diga: 'não fizeram até agora, isto vai passar a servir a função social da habitação que é uma coisa que também já está prevista em lei'”, diz.


Foto: Joana Bourgard/RR
Foto: Joana Bourgard/RR

Vícios, cultura e raízes

Daniela Ferreira, 25 anos, andava à procura de casa em Lisboa há dois anos; estava a viver com a filha em casa dos pais, após se ter separado do companheiro, mas queria recuperar a sua independência. Em agosto do ano passado, encontrou um T1 em Alcântara, por 139 mil euros. “Uma pechincha”, tendo em conta os preços de mercado atuais. Por isso, decidiu comprar, pedir crédito.

“Cresci em Oeiras, já tinha alugado casas em Lisboa. Comecei por alugar um quarto em Benfica, em 2015. Pagava 200 euros por um quarto, sem recibos.” Quando foi viver com o ex-companheiro, mudou-se para um T1 em Alvalade, um rés-do-chão, a pagar 800 euros. “Uma diferença muito grande de valores.” Mais tarde, quando a filha nasceu, voltou a morar no seu concelho natal. Por um T3 pagava a renda de 800 euros mensais.

Hoje, Daniela paga uma prestação ao banco de 260 euros mensais, tem um empréstimo a 40 anos. Comprar foi a única “opção”. “Fica muito mais em conta mensalmente esta prestação. No fundo, o meu limite era ir até aos 350 euros de prestação. Como ainda sou nova, não me assusta muito esta possibilidade de pagar a casa durante 40 anos, porque sequer não teria outra opção se estivesse a alugar uma casa. Mesmo que fosse um T0 estaria a pagar, no mínimo, 600 euros, 650 euros”, diz.

No início de 2021, Inês Barroso, 32 anos, também comprou uma casa em Lisboa. O raciocínio foi exatamente o mesmo de Daniela. “A questão da renda foi muito importante para comprar ou não uma casa. Eu fiz a compra juntamente com o meu companheiro e para nós o racional partiu muito de ficarmos com uma prestação significativamente mais reduzida do que a renda de uma casa em Lisboa. Tivemos isso em conta”, diz.

Com a pandemia, o casal conseguiu “reforçar as poupanças”, por isso, quando chegou a hora de dar a entrada, puderam investir mais. “Ficamos com um crédito a 25 anos numa primeira habitação. E muito longe da taxa de esforço recomendada pelo Banco de Portugal [33%]. Foi o nosso pequeno milagre da Covid”, diz.

A lógica de compra de casa de Daniela e Inês tem raízes históricas. Advém de um problema sistémico que data, pelo menos, do início dos anos 90. “Há uma construção social que se fez ao longo de séculos, em que as pessoas acham que se estão a pagar uma renda a um senhorio são inquilinos, se estão a pagar uma renda aos bancos são proprietários. Isto não é uma condição material de análise. Isto é claramente uma construção social. Isto é meu, isto não é meu”, aponta Bernardo Alves, do Movimento Habitação Hoje!.

A liberalização do sistema financeiro criou as condições para que houvesse uma grande liquidez para quem quisesse comprar casa, através de hipotecas, empréstimos e outros mecanismos de acesso a crédito. Ora, o que é isto diz sobre o país? “Diz muito sobre as políticas que usamos durante 30 anos de bonificação das taxas de juro, que empurraram muitas famílias para a compra de habitação, quando se deveria estar a apostar, como fizeram outros países, no setor do arrendamento, que se mantivesse ao longo de gerações a um preço razoável para as famílias poderem pagar”, afirma a investigadora Sónia Alves.

Por alguma razão, “Quem casa, quer casa”, um dos slogans publicitários mais conhecidos, nunca foi declinado em “Quem casa, arrenda casa”. “Algo aconteceu como resultado das nossas políticas de habitação: a determinada altura fica mais económico para as famílias comprarem casa do que arrendarem casa, mas isto foi o resultado das políticas de habitação que deram bonificação às taxas de juro, em vez de ter optado por uma dinamização do setor do arrendamento.”

Depois chegou 2012 e a desregulação do setor. O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), lançado pelo Governo de Pedro Passos Coelho, “veio aumentar o valor das rendas”. Ao “congelar as rendas antigas”, em vez de subsidiar as famílias que tinham esses contratos, criou-se “uma distorção no mesmo prédio entre uma renda antiga e uma renda recente”.

“Os programas não foram suficientemente atrativos para os senhorios fazerem obras de reabilitação, porque o valor das rendas, que tinham sido alvo de congelamento durante décadas, não justificava o valor de retorno. Na opinião deles, não justificava esse esforço”, explica a investigadora.

Portugal seguiu “contracorrente”, quando decidiu não dar o subsídio de apoio à renda no caso dos contratos com rendas antigas e muito reduzidas. “Pessoalmente, acho que fizemos uma asneira. Diminuímos a confiança no mercado de arrendamento”, aponta Sónia.

O congelamento das rendas no caso dos contratos mais antigos “afastou a população dos próprios centros das áreas metropolitanas”. “E a construção foi sendo o resultado de uma incapacidade de dinamizar a reabilitação e o setor do arrendamento. Portanto, se tivéssemos feito uma eficaz política de incentivo à reabilitação e ao apoio ao arrendamento, tal não teria acontecido. Não teríamos tido edifícios vagos, devolutos, degradados, nos centros da cidade, que foram um grande incentivo e apetite aos capitais estrangeiros, que encontraram aí um bom objeto de investimento.”

Por outras palavras, as condições para um "boom" de procura no mercado estavam criadas. Talvez por isso, o nascimento dos Vistos Gold (Autorização de Residência para Atividade de Investimento), funcionou, em 2012, como uma injeção de esteroides no setor.


Foto: Estela Silva/Lusa
Foto: Estela Silva/Lusa

Himalaias dos preços

Quase todos os trimestres surgem novas estatísticas sobre a evolução dos preços da habitação em Portugal. E, apesar da pandemia dos últimos 15 meses, todas parecem dizer a mesma coisa: comprar casa ou alugar está a ficar cada vez mais caro.

Há menos de três semanas, a Organização para Cooperação e para o Desenvolvimento Económico (OCDE) revelou que entre 2015 e 2020 os preços das casas em Portugal cresceram 31% mais do que os salários. Neste indicador, Portugal é o pior dos 34 países. Mais: apesar da pandemia, os preços das casas aumentaram 10% em 2020 face ao ano anterior. Os agravamentos chegaram aos 13% no Grande Porto e aos 12% na Grande Lisboa. E o Algarve lidera o "ranking" com uma subida de 49% acima da média nacional.

Para Sónia Alves, os números da OCDE são sintoma de um problema “muito grave” e sem “resolução fácil”, o “quase desligamento entre o que são os rendimentos das famílias e o preço da habitação”. Com um mercado “mais global”, com muitos investidores estrangeiros a entrar em cena, “não é expectável que o aumento de oferta consiga só por si diminuir preços”.

“O facto de a habitação não ser vista só como um local onde se mora, mas um veículo de investimento, seja usada como hotéis, para Airbnb, de forma sazonal, e não responder às necessidades de habitação permanente das famílias faz obviamente diminuir a oferta”, explica.

De acordo com dados da Confidencial Imobiliário, quase metade dos investimentos para reabilitação feitos em Lisboa, nos últimos cinco anos, provieram de investidores estrangeiros. As cidades mais afetadas “são aquelas onde, curiosamente, havia uma maior percentagem de arrendamento, arrendamento associado a contratos antigos, que era um arrendamento acessível às famílias de classe média e baixa”.

Corroborando o diagnóstico de Sónia Alves, Hugo Santos Ferreira, presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), diz que a principal razão para os preços altos em Portugal está diretamente relacionada com a “falta de oferta”. “Nós não temos sítios para reabilitar nem terrenos para construir suficientes, para podermos ter mais produtos disponíveis no mercado”, queixa-se à Renascença.

Uma possível solução seria o próprio Estado “disponibilizar o vasto património público que tem, quer edifícios, quer terrenos, vendidos a privados, mas atenção, de forma condicionada. Dedicada à construção de habitação quer para venda, quer para arrendamento. Porque aqui o arrendamento assume uma importância extrema”, diz.

O "Built-to-rent" (construir para arrendar) é uma tendência europeia com pouco lastro em Portugal. Porquê? “Instabilidade legislativa. Desde 2012, o NRAU foi alterado “mais de uma vez por ano”.


 

Esteroides Gold

Entre outubro de 2012 e maio último, o programa dos vistos gold captou quase 5,9 mil milhões de euros em investimento. Deste montante, a maior parte corresponde à compra de bens imóveis (5,2 mil milhões euros), 309 milhões foram destinos à reabilitação urbana e 557 milhões resultaram da transferência de capitais (até ao mês passado, foram atribuídos 9.170 vistos por via de compra de imóveis, dos quais 859 para reabilitação urbana).

É importante “não esquecer que nos primeiros anos pós-crise financeira não havia procura interna, as empresas estavam descapitalizadas, as famílias descapitalizadas estavam, e, portanto, o único dinheiro com o qual nós podemos contar de facto foi com este tipo de investidores, que vieram para Portugal desenvolver ativos imobiliários onde havia procura”, defende Hugo Santos Ferreira.

Recusando a etiqueta de “ingratidão”, o representante da APPII garante que Portugal “não teria recuperado a sua economia no pós-crise 2008, se não fossem os investidores imobiliários”.

Hugo Santos Ferreira diz ainda que as críticas ao programa – de inflacionar os preços, reduzir a oferta – são um erro. “Quando nós procuramos resolver o problema da oferta reduzindo a procura, tentando afastar investidores, o resultado está à vista. Foi o que fizemos até agora. Não se resolve o problema.”

A maioria dos associados da APPII, que nos últimos anos possam ter estado a fazer projetos para classes mais altas, está hoje “a desenvolver ativos para a classe média”, diz. “A procura neste momento chama-se classe média”, mas os custos de contexto – a taxa de IVA máxima não dedutível, por exemplo – são entraves à descida de preços. “Não podemos deitar fora um programa que já nos trouxe mais de 5 mil milhões de euros”, reitera.

Sónia Alves entende “até certo ponto” o argumento que Hugo Santos Ferreira expõe: o investimento potenciado pelos vistos gold veio “criar algum dinamismo ao nível da reabilitação urbana”. “Foi esse argumento que o justificou um pouco, naquele período que sucede à intervenção da troika e políticas de austeridade. Não havia apoios nenhuns para reabilitação, com o Governo que quase não conseguia intervir, tentou-se dinamizar os mercados de habitação por essa via. Mas sinceramente o que a evidência mostra é que parece não ser a melhor solução”, diz.

Enquanto alguns países já estão a limitar o investimento estrangeiro no setor da habitação, “nós mantemos os vistos gold, com um efeito dramático nos mercados de habitação”.

“Uma coisa é investimento estrangeiro em atividades produtivas industriais, atividades que geram emprego, outra coisa é o investimento em 'real estate' com o objetivo de rentabilização. Acabamos a falar de hotéis, Airbnb, o que traz este grande impacto ao nível dos grandes mercados de habitação”, aponta.


Foto: Estela Silva/Lusa
Foto: Estela Silva/Lusa

Porto na dianteira

Em Portugal, “o casamento entre políticas de planeamento urbano e políticas de habitação é praticamente inexistente”. Segundo a investigadora Sónia Alves, uma das poucas exceções é o município do Porto. O Plano Diretor Municipal (PDM) da autarquia conta com uma política de “zoneamento inclusivo”. Esta medida estipula que grandes operações urbanísticas na Baixa do Porto devem destinar 10% da área de edificação para habitação acessível – algo que já existe há muitos anos na Dinamarca, mas com moldes ligeiramente diferentes.

No país nórdico, existe a chamada “regra de um quarto”: um promotor privado que construa uma urbanização é obrigado a deixar 25% dos fogos construídos para arrendamento do Estado; em troca, os construtores têm acesso a terrenos mais baratos, facilidade em pedidos de licenciamento ou outros benefícios fiscais. Foi assim que a Dinamarca “construiu” parte do seu parque habitacional social.

Em março deste ano, o município do Porto lançou o concurso para a construção de 232 fogos no Monte da Bela (antigo bairro social São Vicente Paulo, que foi mandado demolir por Rui Rio, quando este estava no comando do município nortenho). A obra será suportada por privados, que em troca receberão parte dos terrenos e parcelas que integram o Plano de Pormenor das Antas; por sua vez, a autarquia ficará com “pelo menos metade dos fogos” para colocar no mercado através do Programa de Arrendamento Acessível, explica Pedro Baganha, vereador do Urbanismo da Câmara do Porto, à Renascença. Objetivo? Dar resposta às necessidades da classe média.

“Pegámos num dos maiores terrenos disponíveis do município, em Campanhã, o Monte da Bela, e fizemos um loteamento. Desse loteamento, resultou um conjunto de 232 fogos. Quem é que vai ganhar o concurso? Quem nos der mais fogos construídos. Sendo que no mínimo têm de nos dar metade destes fogos. Ou seja, quem ganhar fica responsabilizado pela construção dos arruamentos, dos passeios, dos jardins e dos edifícios”, conta.

No fundo, uma troca. “Terrenos por casas. Pago a construção com terrenos onde depois o privado pode construir o que muito bem entender. Pode ser habitação acessível, mas pode ser habitação comercial normal. Esta foi uma forma de rapidamente construir ou ter no terreno obra sem onerar o orçamento municipal, porque eu não vou despender um euro do orçamento municipal. Vou pagar, repito, com terrenos”, explica o vereador.

Este modelo de construção é “território desconhecido” em Portugal. Afinal, diz Pedro Baganha, o país sempre teve “uma posição algo ortodoxa ao nível da habitação pública”, por entender que esta deve ser “construída pela esfera pública”. “Nós aqui no Porto achamos que não tem de ser necessariamente sempre assim. Portanto, estamos a tentar mobilizar o tecido privado para que contribua para a resolução do problema, que é um problema que todos conhecemos que existe, que é o diferencial crescente entre o preço da habitação e os rendimentos auferidos pelos portugueses.”

Para o problema da habitação pública, “não há uma solução, há várias.” Temos de utilizar todas. Parcerias com privados, iniciativa pública pura e dura, programas mais táticos”, defende.

À partida, Hugo Santos Ferreira, da APPII, não descarta uma medida equivalente à regra dos 25% dinamarquesa em Portugal. Mas deixa um aviso. “Não posso dizer imediatamente que seja contra, penso que temos de atender às circunstâncias em que as propostas forem formuladas. Mas qualquer proposta nesse sentido, seja nacional, seja autárquica, que seja feita sem a tal compensação que permita mitigar ou anular a criação desse ónus sobre um projeto residencial, eu diria que terá o nosso voto contra, porque de facto só irá inviabilizar mais projetos. Não trará benefícios a ninguém”, diz à Renascença.


Foto: Jorge Castellanos/Reuters
Foto: Jorge Castellanos/Reuters

PAA, uma ratoeira

Para o Movimento Habitação Hoje!, o Programa de Arrendamento Acessível (PAA), delineado pelo Governo de António Costa e que o Porto quer aplicar nos fogos do Monte da Bela, surgiu porque o problema do aumento das rendas “chegou à classe média” e tem várias falhas.

O facto de o desconto da renda de 20% ser calculado com base nos preços de mercado (que vêm a subir há seis anos consecutivos), em vez dos rendimentos das famílias, é apenas uma dessas falhas, mas é importante: em 2017, o valor de mercado da renda de um T2 em Paranhos, no Porto, era de 601 euros; já em 2020, o mesmo apartamento alugado via PAA custava 642 euros. Ou seja, o programa do Governo não consegue colmatar ou sequer acompanhar subida de preços do mercado. (O mesmo acontece noutras freguesias e cidades, segundo cálculos do movimento.)

“Políticas que só estimulam o mercado nunca vão resolver o problema da habitação. O mercado está viciado na habitação, no trabalho. Todos os mercados estão viciados, porque o mercado só funciona se tiver vícios”, aponta Bernardo Alves, 25 anos, representante do Movimento Habitação Hoje!, à Renascença.

Delineada a primeira falha, existe outra relevante: só podem aceder ao PAA agregados familiares ou indivíduos cuja renda não implique uma taxa de esforço inferior a 15% ou superior a 35%. Se uma família do Porto tiver um rendimento mensal de 1270 euros (dois salários mínimos), poderá pagar, no máximo, uma renda do PAA até 444 euros – valor inferior ao praticado no mercado até para um T1.

Se o objetivo último do Governo fosse a criação de um Serviço Nacional de Habitação, este não seria atingido através do PAA. “O único remédio é acabar com ele. Não serve para nada”, diz Bernardo. E a única solução é o “investimento em habitação pública”, o que vai “permitir estabilidade ao longo do tempo”, tal como já fizerem há décadas alguns países no norte da Europa.

“Para termos o que a Finlândia ou Dinamarca têm, 30 ou 40% de habitação pública, ou começamos a expropriar habitação como malucos ou começamos a construir, o que não é nada sustentável no que toca às preocupações climáticas que são obrigatórias agora. E a quantidade de anos que iria demorar para aumentar o parque público de 2 para 40%... Não se pode jogar naquele campeonato, enquanto estamos na liga dos últimos”, avisa.

A estratégia, defende o ativista, passa pela recuperação de casa devolutas (segundo números do INE datados de 2014, existem em Portugal 735 mil casas devolutas). “Se houvesse uma estratégia que quisesse efetivamente fazê-lo, não era preciso construir uma única casa”, afirma.


Foto: Manuela Pires/RR
Foto: Manuela Pires/RR

Cascais, outra solução?

Além de “cobrar” fogos para arrendamento a promotores privados, a Dinamarca tem ainda outros mecanismos para investir em habitação pública. Desde o final dos anos 70, o Fundo Nacional para Associações de Habitação Sem Fins Lucrativos (Landsbyggefonden) recebe os pagamentos das rendas – após terem sido pagos os empréstimos do Estado que custearam a construção. Este fundo permite ao setor autofinanciar-se, cobrindo obras de conservação, construção de nova habitação.

Em Cascais, algo semelhante está a ser experimentado, conta Filipa Roseta, deputada do PSD, arquiteta e ex-vereadora do município, à Renascença. Em 2019, em parceria com a Santa Casa da Misericórdia, a autarquia começou a reabilitar os 220 fogos do bairro Marechal Carmona, que estava degradado, e arrancou ainda a construção de 220 novos fogos.

Segundo a deputada do PSD, a habitação pública deve ter por base “um sistema autossustentável”: um terço dos arrendatários “vamos assumir que não paga, ou paga muito pouco; dois terços pagam rendas acessíveis. O que nós vimos em Cascais é que se a propriedade for pública, estes dois terços de rendas acessíveis, portanto rendas de um terço dos rendimentos das pessoas, conseguem pagar o empréstimo da construção. Isto significa que o sistema se paga a si próprio. Acho que este é o sistema mais robusto de todos”, diz.

Se a construção é “pública”, e feita em propriedade do Estado à partida, “não me preocupo com o lucro”. Seguindo esta lógica, o valor dos dois terços que vão pagar rendas acessíveis será suficiente para pagar os custos da construção.


Foto: Inês Rocha
Foto: Inês Rocha

Promessas e PRR

Circunstâncias excecionais abrem portas a políticas e mudanças extraordinárias. A pandemia, tudo indica, é um desses momentos raros. Mas, para já, não há qualquer indicador de que Governo de António Costa vá aproveitar a oportunidade para criar um Serviço Nacional de Habitação.

O Conselho Estratégico Nacional (CEN) – o grupo de trabalho do PSD que se dedica a fazer um programa de governo por áreas -, defende que, no que diz respeito ao Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), “a habitação não pode ser pensada como um programa de obras públicas”. “Tem que ser pensada como um sistema, mas que se pague a si própria”, diz Filipa Roseta. O investimento deveria passar pela construção e reabilitação em propriedades do Estado.

“A boa notícia é que nós temos imenso terreno público disponível. Temos pelo país todo propriedades públicas que estão literalmente vazias. Aliás, segundo o relatório do Tribunal de Contas, publicado em janeiro, temos mil e tal imóveis públicos a cair de podre. Já para não falar de Lisboa, onde há pelo menos mais dois mil fogos vazios da câmara”, aponta a arquiteta social-democrata.

Desta forma, o PRR ajudaria a criar “um sistema que se pagava a si próprio, mas era apenas para acelerar uma coisa que pode ser feita sem o PRR. Tendo propriedade pública, consigo arrancar sem o PRR”.

O PRR apresentado por Portugal a Bruxelas reserva 2.782 milhões de euros para dois programas públicos de habitação: a maior fatia, 1.633 milhões de euros, será destinada ao programa 1.º Direito, à Bolsa de Alojamento Urgente e Temporário e ao reforço da oferta de habitação nos Açores e na Madeira; 774 milhões vão para o parque público de habitação a custos acessíveis.

Em todo o caso, já é possível ver falhas no acesso a fundos do PRR: o principal critério de seleção é a celeridade na submissão de pedido, não a necessidade. “A famosa política do talho, do quem chega primeiro. O que está a acontecer é que os municípios fazem estratégias e os que chegam primeiro vão recebendo à medida que vão chegando. É isso que se está a passar”, diz Filipa Roseta.

Dos 308 concelhos nacionais, “as primeiras 30 estratégias submetidas pelos municípios já batem nos tais 26 mil fogos que o António Costa está sempre a falar”. “Obviamente o dinheiro não vai chegar para todas as necessidades”, nota.

Pedro Baganha, vereador do município do Porto, concorda com Filipa Roseta: “O PRR devia ser mais territorializado. Do meu ponto de vista, acho que até devia haver uma agenda urbana específica, para as cidades. Numa Europa mais ou menos globalizada, a competição faz-se entre cidades.” Seria essencial, logo, “uma política do Estado central”, defende.

“Vamos lá ver: a habitação é um direito constitucional. É um direito constitucional caro, mas também é um direito constitucional. Sabemos que não é pelo facto de estar inscrito na Constituição que acontece por artes mágicas. A provisão deste direito constitucional compete ao Estado, nas suas diversas declinações”, começa por dizer. Depois, acrescenta: “Uma autarquia é um braço do Estado, é o poder local. E tem um conhecimento do território. É inegável, em todo o caso, que é preciso um programa nacional, uma política nacional de habitação, por exemplo no que diz respeito à habitação de emergência.”

A Lei de Bases da Habitação estipula que o Governo devia criar um Programa Nacional de Habitação. Este devia ter sido apresentado em outubro do ano passado, mas, até agora, ainda não chegou ao Parlamento.

Na semana passada, o primeiro-ministro afirmou que o arrendamento acessível é a "resposta certa" para a política de habitação. "Temos de ter políticas públicas que assegurem arrendamento acessível para todos os jovens em Portugal", disse. No mesmo evento, o líder do Governo prometeu também que “até aos 50 anos do 25 de abril, em 2024, todas as famílias [a viver em Portugal] terão uma habitação condigna". Promessa de António Costa.


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