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Entrevista

Ana Luísa Amaral: “É uma grande falha nossa descurarmos a Bíblia no ensino”

11 jun, 2021 - 08:26 • Maria João Costa

Acaba de vencer o Prémio Literário Francisco de Sá de Miranda, com o livro “Ágora”, há dias recebeu também o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana. Ana Luísa Amaral não conseguiu escrever no início do confinamento. Agora, tem novo livro a sair.

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Poema do novo livro da poetisa Ana Luísa Amaral
Poetisa Ana Luísa Amaral lê poema do novo livro que sairá em outubro

Durante a conversa, Ana Luísa Amaral vai dizendo alguns versos. Explica que sabe muitos de cor. A poetisa portuguesa que Espanha acaba de distinguir com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana venceu, há dois dias, um novo prémio: o Francisco de Sá de Miranda instituído pela Câmara de Amares.

É neste renovado fôlego que confessa ter um novo livro concluído, mas passou os primeiros meses de confinamento “sem escrever uma linha”. Explica: “Ainda tentei, mas o que saiu era tudo horrível”.

Durante a entrevista ouviu-se por vezes em fundo o ladrar de "Emily Dickinson", a cadela que Ana Luísa Amaral passeava quando lhe telefonaram de Espanha a dar a notícia do prémio.

Como foi receber a notícia do Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana? Ainda no ano passado, os livreiros espanhóis já a tinham premiado. Como viu as palavras do júri?

Senti-me muitíssimo honrada. Eu já tinha tido, no ano passado, dois prémios em Espanha: o prémio Leteo, que não pude ir receber, e o Prémio das livrarias de Madrid. Este é diferente. Este “tic-tic-tic” que está a ouvir por trás na entrevista é da minha Emily Dickinson, a minha cadela. Eu estava a passeá-la no meu jardim quando me telefonaram de Madrid com o anúncio do prémio. Foi uma surpresa muito grande e uma enorme honra. Depois, vim para casa e telefonei à minha filha, a primeira pessoa a quem liguei e disse: “Não sei se será mesmo… - Pois, mãe, tens a certeza? - Não sei muito bem!” Entretanto, entrou uma chamada e era o "El Pais" para recolher um depoimento.

Só aí acreditou que tinha mesmo ganho o prémio?

Sim! Sabe como é, uma pessoa fica assim um pouco atarantada. É um prémio muito grande e prestigiado. Foi uma alegria.

Na declaração do júri, vemos palavras e expressões associadas à sua poesia, como “mensagem de abertura”, reivindicação”, “defesa da liberdade e da dignidade humana”. Estes são valores com os quais identifica a sua poesia?

Eu, Ana Luísa Amaral, tento lutar e guiar-me por esses princípios. Acredito apaixonadamente neles! Acredito que é preciso intervir do ponto de vista político, social etc. Não estou a pensar em partidos, estou a pensar em política no sentido mais puro. Tem a ver com "polis", com o espaço comum ao qual pertencemos todos e todas e devemos pertencer por igual. Acredito na força de qualquer reivindicação. Continuo a acreditar na liberdade, na dignidade humana, com certeza.

Acredita nessa força da política?

Não podemos isolar o poder. Eu tenho um livrinho, uma peça de teatro, que se chama “Próspero Morreu”, em que a determinado momento diz assim: “Sem liberdade, é o poder um monstro de braços bifurcados e língua bifurcada onde se alojam leis sem pensamento e se torna viscoso o coração”. Estou a dizer de cor. Como sabe, eu sei muitos versos de cor. E é isso: o poder existe porque nós estamos continuamente a exercer poder, no sentido de potência. Há o poder benigno e, depois, há o poder que é o poder sem liberdade, que se exerce sobre os mais vulneráveis e sobre aqueles que por diferentes razões de raça, etnia, género, sexualidade ou de nacionalidade, como os refugiados, continuam a ser discriminados, espezinhados, esquecidos.

Isso tudo cabe dentro da sua poesia?

Eu acho que a poesia não está divorciada do mundo, faz parte do mundo e quem escreve tem um corpo e esse corpo, as emoções e o pensamento relacionam-se com o mundo, é natural que essas minhas preocupações, princípios nos quais acredito, passam para a minha poesia, para aquilo que escrevo. Porque é que a literatura há de estar isolada do contexto social? É natural que aquilo em que acredito, a forma como eu me relaciono com o mundo de alguma maneira passe para a minha poesia. O que eu sei, profundamente, é que não tenho um programa para a minha poesia. Quando me sento a escrever, ou no carro e me surgem versos, ou quando acordo e de repente me aparece um verso, não penso, agora vou escrever um poema sobre os refugiados, agora vou escrever sobre as injustiças do mundo ou vou escrever um poema que ligue batatas e a dignidade das mulheres, por exemplo! Eu não penso nisso, eu escrevo! Agora o que escrevo é também um reflexo refratado de quem eu sou. A poesia está ligada á vida, mas existe sempre desfocada dela.

Nem sempre é a sua voz que fala na poesia?

O eu de que fala os meus poemas, não tem de ser o eu. No meu próximo livro, tem um poema que se chama “A Mesa”. Quem fala nesse poema é uma mesa. No “Ágora”, o meu último livro, tenho um poema em que a voz é um cavalo. Cristo fala, por exemplo em vários dos meus poemas de “Ágora”, ou Maria, por exemplo. Há sempre isso, a poesia é também fingimento. Ainda assim, há sempre uma verdade. Eu acho que ela tem de ser verdadeira e fiel a si própria. Acho que se sente a verdade, que um poema não é uma mera fabricação.

O último livro, “Ágora”, editado pela Assírio e Alvim é muito diferente dos seus outros livros...

É verdade, eu também acho que é.

Tem um caráter mais religioso. Como é que surgiu o “Ágora”?

É curioso. A génese de “Ágora” teve lugar numa viagem que fiz pela poesia, a Itália, a Florença. Vi um quadro lindíssimo de um pintor do séc. XVII, muito pouco conhecido, em que Maria está a receber a Anunciação do anjo, dizendo que ela vai conceber. E é muito bonito, porque ela tem a mão no peito e o Livro à frente e a expressão dela de absoluta perplexidade e até de alguma revolta é muito clara. Quando vi aquele quadro, os primeiros versos apareceram. “Eu, ela perguntou/Mas diz-me como/se trago sobre mim/pano de linho/tingido de mil céus? É assim que o poema começa. “Se continuo a amar/o meu olhar ao espelho/nele passeio os olhos/ como em longo deserto/vagueia o peregrino? Mas sobretudo/ se não ecoa em mim/ o nome que me dás/ nem o meu sim/ressoa/ em nitidez de sino?” Foi assim que começou!

Os outros poemas também surgiram a partir de pinturas?

De quadros ou situações que me impressionavam ou de situações relacionadas com questões religiosas. Desde criança conheço muito bem a Bíblia. Acho que é o grande livro da nossa civilização cristã. Devia ser obrigatório as pessoas lerem-na, mesmo nas universidades. Faz-me muito impressão. Uma vez uma colega minha na universidade citava a Bíblia pela página! Como é que pode ser página?! É capítulo e versículo. Faz-me muita impressão esta ignorância relativamente ao que é fundacional para nós.

A Bíblia deveria, no seu entender, ser de leitura obrigatória?

Acho que sim, partes dela. É muito grande. Faz parte do nosso grande património cultural, e histórico. Repare, como é que posso compreender, falar e discutir uma questão que está muito em cima da mesa nos Estados Unidos que são as teorias criacionistas que a meu ver não fazem sentido nenhum. Como é que eu posso discuti-las se não conheço a Bíblia? Bastava as pessoas lerem “Os Cânticos dos Cânticos”. Digam-me se não é dos mais belos poemas de amor que alguma vez foram escritos. Ou leiam, por exemplo, passos como aquele maravilhoso “eu posso ser como um símbolo quebrado, mas se não tiver amor não sou nada”. Então não é importante saber que a palavra amor e a palavra caridade se equivaliam? Que caridade não tem nada a ver com as caridadezinhas, mas sim, com um tipo de amor. Acho que a Bíblia tem coisas de uma violência inaudita. E tem passos de uma beleza absolutamente extraordinária.

E não é valorizada, hoje a Bíblia?

Eu não estou a dizer ler a Bíblia só por uma questão intelectual. É também para conhecermo-nos. Não passa pela cabeça de um alguém do mundo árabe não conhecer o Corão! Como é que nós não conhecemos a Bíblia? Acho que é uma grande falha nossa, essa de descurarmos a Bíblia no ensino

Há palavras que não cabem na sua poesia?

Não, quer dizer, há. O insulto pelo insulto, não cabe na minha poesia. Não há necessidade nenhuma e sinceramente não tenho nenhum poema com uma expressão insultuosa. De resto, penso nas palavras que constituem o mundo, mas não nessas do insulto, que me magoam a mim. Digo num poema antigo: “Todo o poema é sobre aquele que sobre ele escreve”, ou seja, quando nós escrevemos é para nós que escrevemos, e só depois é que escrevemos para os outros. Só depois é que temos necessidade de partilhar com os outros o que escrevemos. É aí que a poesia e toda arte cumpre o seu papel que é o da comunicação. Quando estou a escrever não estou a pensar vou escrever isto ou aquilo. Quando eu escrevo, escrevo porque preciso de escrever!

Temos ideia de que os escritores e poetas gostam de estar isolados. Como viveu este último ano de pandemia e a obrigação de confinamento?

Uma coisa é o confinamento obrigatório. É a velha história, do turismo e da emigração. Uma coisa é ir ao estrangeiro para fazer turismo, outra coisa é ir para o estrangeiro por necessidade, porque se passa fome no nosso país e precisa-se de sair daqui. É uma situação semelhante. Ponha aí todas as aspas, claro. Estar confinado não é o mesmo que ter de sair de um país em guerra, não é! Agora o que tivemos uma quantidade de imagens de guerra que foram atribuídas ao vírus. “Vamos vencer isto”, “vamos lutar contra”, “o vírus ataca”. Todo os campos semânticos que têm a ver com guerra e ataques foram atribuídos a este vírus que nos tomou completamente de surpresa.

Conseguiu escrever?

Uma coisa é a pessoa confinar-se porque quer. Vejo os meus amigos romancistas a dizerem eu agora tinha mesmo, mesmo de me enfiar em casa para acabar este livro. Como sabe a escrita do romance não é como a escrita da poesia. É diferente. Exige uma dedicação em termos de tempo seguido que a poesia não tem. Agora este confinamento obrigatório, o medo, o terror, durante esses primeiros três ou quatro meses eu não consegui escrever uma linha! Ou melhor, eu escrevi, ainda tentei, mas o que saiu era tudo horrível, horrível, mau, péssimo! Eu não era capaz de escrever, mas de repente nos últimos sete meses eu preparei este livro que vai agora sair. Quando comecei a organizar o índice, eu soube que o livro estava pronto. Já o mandei para a Assírio e Alvim e sairá em outubro.

Esta pandemia veio sublinhar as diferenças e desigualdades?

Eu tive alguma esperança de que esta pandemia nos viesse mostrar justamente, a condição comum humana, ou seja, a da tremenda fragilidade de todos nós. Todos nós adoecemos, morrermos, se cairmos de um primeiro andar no mínimo partimos uma perna ou um braço. Nós somos todos vulneráveis. E essa condição de fragilidade comum, pensei que a pandemia nos fosse mostrar isso e tornar-nos talvez mais sensíveis ao outro, sentindo mais a partilha com o outro. Não sei. Ainda é cedo. Pelo contrário, acho que se as desigualdades já existiam claro que pioraram com a pandemia.

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  • Ivo Pestana
    16 jun, 2021 Ram 13:04
    O problema já começa na catequese. Pouco ou nada se fala da Bíblia.

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