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Carta dos Direitos Digitais

Nova censura? “Não há um verdadeiro espírito de liberdade”, diz Pacheco Pereira

01 jun, 2021 - 20:54 • Filipe d'Avillez

Aumenta o número de vozes críticas da Carta dos Direitos Digitais que foi aprovada na Assembleia da República e promulgada pelo Presidente sem que ninguém estranhasse o que muitos consideram uma institucionalização da censura.

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Portugal assistiu esta semana a um momento peculiar da vida política. Uma lei aprovada na Assembleia da República, e já promulgada, está a ser contestada por atentar contra a liberdade de expressão, mas os protestos não vêm da oposição ou de qualquer partido político, apenas da sociedade civil. Ou pelo menos assim era até à Iniciativa Liberal pegar no assunto.

Em causa está sobretudo o artigo 6.º da Carta dos Direitos Digitais, que pretende combater a desinformação e o fenómeno da chamada “fake news”. O problema, segundo os críticos, é que para o fazer impõe um modelo de censura que fica nas mãos de organizações não-judiciais e que não respondem perante a população.

O comentador Pacheco Pereira está entre os que ergue a voz contra esta proposta. “A última coisa que quero é que o Estado, ou entidades que não são judiciais” controlem o discurso dos cidadãos, diz, recordando que embora a lei abra uma exceção para o humor e a paródia, não refere a publicidade.

“A publicidade cai inteiramente dentro da classificação de desinformação. A marca X lava mais branco... Sei lá se lava mais branco! O meu hotel é o melhor do mundo... Sei lá! Ou então o discurso político. Não há fronteiras fáceis de definir entre um discurso que contém sugestão, que contém falsidades, porque elas são comuns no discurso que pretende ser sugestivo”, acrescenta.

Pacheco Pereira dá mesmo um exemplo do atual Governo. “Quando houve uma pseudoinauguração do aeroporto da Ota, fez-se um vídeo com aviões a levantar do aeroporto da Ota. Isso cai dentro da alçada, se fosse hoje, dessa lei, porque para todos os efeitos nenhum avião levantou na Ota, aquilo é mentira. O mesmo acontece a muitas outras coisas que são entre a propaganda política e a publicidade.”

O problema, diz o comentador, não é a intenção de combater a desinformação e a falsidade, mas o modo como se escolheu fazê-lo. “Se me dizem que é fundamental punir o crime que se comete dentro da internet, estou de acordo. O que é crime cá fora, deve ser crime lá dentro. Se quiserem fazer uma coisa útil, adaptem a lei para que seja fácil aos juízes, num processo normal, decidirem calúnia, difamação, qualquer do enquadramento legal que já existe cá fora. Que o adaptem às circunstâncias da internet. Mas isso é uma coisa, outra é a desinformação. A desinformação tem fronteiras muito difíceis de definir e, portanto, vão depender de denúncias, vão depender de quem decide a cada momento, e se quem decide for uma entidade de nomeação política presta-se ao controlo político.”

Verificadores de factos ou “comissão de censura”?

Outro ponto que assusta os críticos é a ideia avançada na lei de se apoiar os “verificadores de factos” de “órgãos de comunicação social devidamente registados”.

“Não tem pés nem cabeça. Esquece-se que esses mecanismos de verificação podem ser manipulados, basta ver quando se escolhe o que se quer verificar. Se eles escolhem só determinado tipo de coisas, ou uma maioria de coisas vindos de um lado do espetro político, estão a manipular mesmo face à verificação de factos, porque escolhem uns e não escolhem outros.”

A preocupação é partilhada por Estêvão da Cunha, da associação Sall, que define a sua missão como “a defesa da liberdade. Da liberdade de pensamento, expressão e educação.”

“Isto é institucionalizar ‘fact-checkers’, que é uma comissão de censura, na prática, porque a verificação de factos muitas vezes não faz outra coisa que verificar opiniões. Já vimos muitos ‘fact-checkers’ com posições diversas sobre a mesma questão.”

“Sobretudo é um grande perigo quando aliado àquilo que existe, que é uma pretensão de se atribuir suporte de caráter científico a teses que são puramente ideológicas, e por vezes são radicais, e perigosas, como é o caso da ideologia de género. Se juntarmos uma coisa à outra, isto fica explosivo.”

“Obrigação do Estado é proteger as opiniões minoritárias”

Estêvão da Cunha sublinha que há varios exemplos de países ocidentais onde pessoas estão a ser perseguidas judicialmente por terem opiniões polémicas. Em França, por exemplo, o Estado proibiu sites pró-vida de exibirem informação que pudesse dissuadir mulheres de fazer abortos e chegou a proibir um anúncio que visava promover a dignidade de pessoas com trissomia 21, porque podia ofender mulheres que tivessem abortado fetos com essa malformação. Mais recentemente, na Finlândia, uma deputada e ex-ministra foi acusada de três crimes por ter defendido a posição cristã sobre o casamento e criticado a Igreja evangélica nacional por ter apoiar publicamente uma marcha LGBT, e o capelão de um colégio inglês foi denunciado a uma autoridade antiterrorista e despedido depois de ter dito aos alunos, durante uma celebração religiosa, que eram livres de discordar da ideologia do género.

“Aquilo que importava fazer era criar condições para que as pessoas pudessem expressar-se livremente. A função do Estado aqui seria precisamente contrariar todas estas tendências repressoras que as atuais ideias politicamente corretas estão a fazer pesar sobre todas as pessoas. O Estado o que devia era defender as pessoas disso, proibir essas ingerências, garantir um espaço de liberdade às pessoas para que pudessem exercer plenamente a sua liberdade, liberdade religiosa, a sua opinião.”

O advogado recorda que a liberdade de expressão existe precisamente para proteger o direito a expressar opiniões que vão contra o sentimento da maioria. “Tanto mais protegidas deveriam ser quanto mais minoritária fosse a sua opinião, porque hoje em dia as opiniões de caráter mais religioso ou conservador, não sei se serão minoritárias, mas aparecem como minoritárias nos meios de comunicação social e no mainstream. De maneira que essas precisariam ainda mais de ser protegidas. O Estado faz exatamente o contrário com esta lei, o que faz é dar uma força institucional a este tipo de perseguições.”

Perante tantas críticas, o mais estranho é mesmo que nenhum dos partidos da oposição tenha aproveitado para ganhar pontos políticos ao PS, de cuja bancada parlamentar partiu o projeto. Pelo contrário, a lei foi aprovada sem qualquer voto contra. Entretanto, já depois da promulgação, a Iniciativa Liberal, que se absteve no Parlamento, anunciou a intenção de rever a lei, retirando este artigo 6.º.

Pacheco Pereira atribui o consenso à falta de verdadeiro espírito de liberdade em Portugal. “Porque é que toda a gente a aprovou? É muito simples. Não há um verdadeiro espírito da liberdade. Fala-se muito da liberdade, mas quando há questões que envolvem a liberdade real as pessoas encolhem os ombros. Os grandes partidos não a querem e aqueles que estão sempre a encher a boca de liberdade, como a Iniciativa Liberal, nos momentos cruciais dedica-se à liberdade económica e esquece a liberdade política.”

Estêvão da Cunha diz que o problema é a acomodação da sociedade em geral. “O exercício da liberdade é uma coisa que custa, que exige algum sacrifício, exige uma desinstalação. E todos nós experimentamos esse acomodamento.”

“Até acredito que se calhar nem repararam. É muito mau sinal que não tenham reparado nos artigos da lei que aprovaram, mas eu até acredito que talvez tenham olhado com uns olhos benevolentes, que o Estado só pretende proteger as pessoas contra a desinformação.”

O membro do Sall alerta também para o efeito pernicioso destas leis sobre os direitos básicos.

“Criam-se palavras novas todos os dias e criam-se direitos novos todos os dias. Este direito da proteção contra a desinformação é uma coisa nova. Ora, estes direitos novos acabam com os direitos básicos, porque há uma esfera de proteção que necessariamente vai comprimir as restantes esferas de proteção. Isso é evidente. E também por aí isto é muito perigoso, mas as pessoas estão acomodadas e vão aceitando estas coisas”, conclui.

Rui Rio desconhece o artigo

Já esta terça-feira à tarde o líder do PSD, Rui Rio, foi confrontado com a polémica e admitiu que não conhece bem a lei que o seu partido ajudou a aprovar no parlamento.

Questionado sobre a intenção da Iniciativa Liberal de rever a questão, disse: “vou ter de ir ver a alínea, ainda não fui ver no seu texto exato, para ver se dou razão, ou não dou razão à Iniciativa Liberal”

Mas não deixou de criticar o partido representado no Parlamento por Cotrim Figueiredo. “Dá-me a ideia que a Iniciativa Liberal quer dar um pouco nas vistas e marcar um bocado presença ao ser contra o que foi a onda dominante. Mas tenho de ver melhor o texto exato, para ver se há algum receio ou não”.

“Mas há uma coisa de que tenho a certeza absoluta, é que seja combatida a desinformação, os insultos e a difamação que existem nas redes sociais, porque todos sabemos que isso não pode continuar”, afirma.
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  • Maria Oliveira
    01 jun, 2021 Lisboa 22:57
    Este Dr. Rui Rio é uma tragédia para o PSD. O partido aprovou uma lei que ele não conhece. E acha que a IL quer dar nas vistas por contestar a referida lei. Este senhor devia pensar antes de falar.

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