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Entrevista a Hans Zollner

Abusos. “Igreja deve arrepender-se publicamente dos crimes do passado”

30 mai, 2021 - 08:16 • Aura Miguel

Em entrevista à Renascença, o homem-chave do Vaticano na luta contra os abusos na Igreja admite que haja mais casos por conhecer, mesmo em Portugal. Hans Zollner fala de “vergonha” e “incómodo”, mas defende a transparência.

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“Creio que o Senhor quer uma purificação de toda a Igreja”, defende o padre Hans Zollner, em entrevista à Renascença. O homem-chave no Vaticano na luta contra os abusos na Igreja, admite ser-lhe “muito penoso, incómodo e vergonhoso” verificar que, “dentro da Igreja, através de representantes de Deus, foram cometidos delitos graves contra a dignidade de pessoas”.

Membro da Comissão Pontifícia para a Tutela dos Menores e presidente do Centro para a Proteção de Menores, integrado no Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Gregoriana, este jesuíta esteve em Fátima no sábado, onde se encontrou com bispos e membros das comissões diocesanas da Igreja em Portugal. Objetivo: reforçar o caminho de prevenção e consolidar as instruções da Cimeira de 2019, entre o Papa e os presidentes das conferências episcopais do mundo inteiro.

Nas declarações à Renascença, Zollner mostra-se confiante com o trabalho em curso, mas deixa um alerta: a Igreja em Portugal deve-se preparar para o que aí vem.


Como avalia este encontro em Fátima?

Esta jornada foi muito bela, porque conheci muita gente motivada para o serviço às pessoas feridas e vulneráveis; pessoas com uma grande competência e empenho.

Qual é a finalidades destes encontros que tem tido em vários países?

O objetivo é contribuir para que a Igreja e o mundo sejam mais seguros e tenho constatado a disponibilidade generalizada para se prosseguir neste esforço.

No entanto, e apesar de tantos esforços do Papa, o número de casos não pára de surgir…

Sim, continuam a surgir novos casos, mas a perceção é um pouco falsa, porque muitos dos casos de abuso de que se fala foram cometidos há décadas. E está provado que, nos sítios onde a Igreja se foca mais na prevenção, os abusos são muito poucos. E assim, podemos fazer muito para prevenir e evitar escândalos no futuro.

E no caso concreto de Portugal, que avaliação faz?

Daquilo que ouvi, até agora, o número dos casos conhecidos de abusadores entre o clero é muito pequeno. Devo dizer que, isso também aconteceu noutros países, em que não se conheciam tantos casos… Não sei como é a real situação em Portugal, nem a saberemos senão daqui a alguns anos. Para já, temos de ver como se pode fazer justiça às vítimas já conhecidas. E depois deve-se preparar também um serviço para acompanhar as pessoas que, no futuro, desejem falar da sua experiência, das suas feridas e danos.

O padre Zollner trabalha diretamente nestas questões com o Santo Padre. Podemos saber que conselhos lhe deu?

O Papa está muito empenhado e deu-nos sempre um grande incentivo para avançar, quer ao nível da Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores, quer para alargar o nosso Instituto de Antropologia, ligado à Universidade Gregoriana que, a partir do dia 1 de setembro se reforça numa vertente interdisciplinar para incluir, não só a proteção e o cuidado de menores, como das pessoas vulneráveis de todas as idades. Porque, infelizmente, também há casos de abuso sobre jovens e adultos.

Está em causa o reforço da responsabilidade dos próprios bispos?

Na Cimeira de 2019, o Santo Padre deixou muito claro que os bispos não podem ficar isentos da responsabilidade pelo que se passa nas suas dioceses, quanto aos abusos não só se crianças, mas também de adultos e jovens vulneráveis. Por isso, pouco tempo depois da Cimeira, o Papa promulgou, a 1 de junho de 2019, uma nova lei que protege também os adultos vulneráveis.

É neste contexto que se deve considerar a alteração do livro VI do Código de Direito Canónico, anunciada para segunda-feira, dia 31 de maio?

Não conheço o texto final, mas, daquilo que pude acompanhar, creio que o conceito de abuso sexual de menores deixará de ser definido como uma transgressão do sexto mandamento do decálogo (“Não cometerás adultério”), que muitas vítimas e juristas fora da Igreja consideram incompreensível. De facto, para eles, não faz sentido que se refira um crime apenas à luz do sexto mandamento.

E que outras alterações se preveem?

Apesar de não ter lido o texto, espero uma clarificação sobre os direitos de todas as partes envolvidas no processo canónico sobre abusos sexuais. Isto é, que se considerem, de modo claro, os direitos dos dois lados – quer da parte lesada, da vítima, quer da parte imputada, do presumível abusador, que até agora não tem direitos definidos.

O que diz aos fiéis que ficam preocupados e até angustiados com o escândalo causado por tantos casos de abuso?

Quero dizer que, também eu, estou angustiado e apreensivo. Cresci numa zona da Baviera muito católica, na cidade do Papa Bento XVI: Ratisbona. Nunca poderia imaginar estes comportamentos e estes escândalos. O pároco visitava a nossa casa, os professores de religião eram estimados e admirados por todos.

E nestes dias, também na Alemanha, surgem novos problemas.

Sim, são casos antigos, de há 30 ou 40 anos. Mas a sensibilidade na Igreja mudou muito, daí as atuais manifestações de tristeza, desilusão e raiva por tudo o que se silenciou.

Então, que conselho nos deixa?

Como Igreja, somos chamados a viver a verdade. Jesus diz (Jo.8,38) que “a verdade vos fará livres”. Ou seja, é muito penoso, incómodo e vergonhoso admitir que, dentro da Igreja, através de representantes de Deus, foram cometidos delitos graves contra a dignidade de pessoas que lhes tinham sido confiadas. Ao ponto de lhes terem destruído a sua própria vida. Isto é muito grave, mas, enquanto comunidade religiosa, temos de o admitir. E temos de confiar na graça do Senhor que nos diz: se alguém se arrepende do pecado e do delito que cometeu, se o confessa e faz a reparação possível e necessária, pode receber a reconciliação. Mas só nestas condições.

Mas como se concretiza?

Devemos de trabalhar por uma Igreja que possa arrepender-se, publicamente, dos crimes do passado, que os possa confessar claramente – em vez de se defender ou esconder – e que possa fazer justiça, a melhor possível, a favor das vítimas. Só assim nos podemos empenhar, como Igreja, na proteção de menores no mundo de hoje. É esta a nossa missão, é esta a nossa esperança. E que o Senhor nos acompanhe sempre, nesta situação história em que nos meteu.

É um caminho de purificação?

Sim. Com toda a minha alma e com toda a minha fé, creio que o Senhor quer uma purificação de toda a Igreja, não só da hierarquia, mas de todos os fiéis, para se alcançar uma maior humildade e credibilidade no modo testemunhar Jesus Cristo.

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  • Ivo Pestana
    30 mai, 2021 Funchal 19:10
    É, também, um fator das igrejas terem menos pessoas. Muitos acreditam em Deus, mas não nos que o representam.

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