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Vacinas contra a Covid-19

Levantamento de patentes. Seria "recuar anos" no conhecimento científico

14 mai, 2021 - 08:00 • Inês Rocha

Qual a semelhança entre um pastel de Belém e uma vacina? Podemos ter a receita, mas a chave pode estar nos "truques". Especialista em propriedade intelectual considera que a discussão sobre a escassez de vacinas está a ser feita "ao contrário" e os efeitos podem ser perversos: um levantamento forçado da propriedade intelectual pode levar as empresas ao "trade secret". A solução? Cooperação.

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Um levantamento forçado das patentes das vacinas para a Covid-19 poderá levar a indústria farmacêutica a ir "para o segredo", ou seja, a guardar o conhecimento dentro das empresas.

O alerta é de Anabela Carvalho, mandatária europeia de patentes na Patentree. Esta empresa portuguesa ajuda universidades e instituições em todo o mundo no registo das suas patentes. Em Portugal, trabalha com algumas das maiores universidades: Minho, Porto, Coimbra, Aveiro, Nova.

"O nosso trabalho, basicamente, é ouvir as invenções e tentar escrevê-las de forma a que advogado, um jurista, uma pessoa normal consiga perceber qual é o monopólio que a pessoa definiu", explica à Renascença.

Para esta especialista, a discussão do levantamento de patentes das vacinas está a ser feita "ao contrário".

"Eu acho que as pessoas estão a ir para o final da conversa, quanto as primeiras partes ainda não foram tidas em conta. Acho que é por ser a solução mais fácil", considera.

No entanto, para a agente oficial de propriedade industrial, que é também engenheira biológica, levantar as patentes não vai resolver o problema. Até porque os verdadeiros problemas são outros.

"Eu levanto a propriedade intelectual. Tenho matérias-primas suficientes? Tenho instalações suficientes e tenho recursos humanos suficientes para produzir? E onde é que está isso?", questiona.

Além de não resolver o problema da escassez de vacinas, Anabela Carvalho considera que esta postura dos governos pode até ter efeitos perversos.

"Acho que estamos a caminhar para coisas que não queremos - acho que isto levará a indústria farmacêutica a ir para o segredo". Ou seja para o 'trade secret'. Neste caso, as empresas fazem com que "o conhecimento fique dentro de uma instalação de um dado grupo".

Anabela confessa não ter a certeza de que este será o caminho escolhido, mas adivinha que esta poderá ser a reação de algumas farmacêuticas. "É a forma mais fácil de nos protegermos quando não queremos divulgar e quando nos estão a forçar, a tirar algo", considera a especialista.

Até porque, na maior parte dos casos, as patentes ainda não foram concedidas. À exceção da vacina russa, em que as patentes foram concedidas num prazo recorde de dois meses, mas são apenas válidas na Rússia, a avaliação de um pedido de patente demora pelo menos 18 meses. E a decisão final só chega ao fim de três a quatro anos.

Para a engenheira biológica, ver as farmacêuticas optar pelo "trade secret" significaria "recuar anos" no conhecimento científico. "Mesmo em termos de conhecimentos para outras tecnologias que poderão não ser a vacina da Covid", refere.

"Porque, por vezes, eu ler algo que tenha a ver com a vacina da Covid-19 pode ajudar-me a fazer uma vacina contra tuberculose, uma vacina contra a malária".

A patente dá acesso a isso mesmo.

O que é uma patente e por que existe?

Uma patente é um direito de propriedade industrial, um contrato entre o Estado e uma entidade ou uma pessoa que faz a invenção.

"O Estado diz, se vocês tiverem uma solução para um problema e se a solução for nova e inventiva, eu concedo um monopólio de 20 anos", explica Anabela Carvalho.

O contrato resume-se a um texto, no qual a pessoa tem de descrever, obrigatoriamente, como é que consegue reproduzir a invenção.

"Tem de ser pedido Estado a Estado, há processos internacionais que simplificam isto. Há um sistema europeu que concede uma patente europeia, em termos de conjunto, mas teremos de pedir ou regionalmente ou nacionalmente esse direito".

A patente dá à entidade ou pessoa o direito exclusivo de produzir e comercializar uma invenção, com uma contrapartida: ela tem de ser divulgada.

É exatamente esta a razão da existência das patentes. "Porque é que o Estado, que não dá nada, quer conceder um monopólio? Porque senão estaríamos sempre reinventar a roda", explica a especialista.

"A alternativa a isto era nós guardarmos o segredo. Como o Estado não quer que se guarde segredo, ele diz: se vocês divulgarem de forma a poder reproduzir, eu dou-vos esse monopólio, de forma a que as outras pessoas, por publicação dessa patente possam ler, aprender e ter soluções melhores ou alternativas", observa a mandatária europeia de patentes.

"A vantagem para os Estados é essa mesmo, ela poder ser reproduzida e alguém poder melhorá-la, de forma ela se tornar obsoleta. Que não é vantagem para quem regista, mas é vantagem para nós enquanto sociedade, é isso que nós queremos enquanto sociedade".

Uma vacina como um pastel de Belém. Pode haver a receita, mas não sabemos todos os truques

Além de considerar que a discussão do levantamento de patentes é prematura e não vai ajudar a combater no imediato a escassez de vacinas, Anabela Carvalho considera também que esse não devia ser o caminho em qualquer circunstância. O caminho, para a especialista, deve ser a negociação de licenças voluntárias entre os Estados e as farmacêuticas, para aumentar realmente a produção industrial.

Até porque o levantamento das patentes pode não ser suficiente para que outra unidade industrial consiga reproduzir as vacinas.

Para explicar, Anabela dá o exemplo do pastel de Belém, que compra sempre que vai a Lisboa.

"Ele tem 'trade secret', não é? Não sabemos os detalhes todos da receita". No entanto, mesmo que a fábrica dos pastéis de Belém decidisse revelar a receita, seria difícil reproduzir exatamente o produto.

No caso de um pastel de Belém, a patente teria "aquilo a que chamamos a receita, uma instrução genérica em que nos diria, como é que faríamos massa folhada e o creme". O que é que não teria? "Alguns truques que fazem com que nenhum de nós seja capaz de fazer exatamente aquela massa folhada, exatamente aquele creme do pastel de Belém".

"Não sabemos os detalhes todos da receita. Eu nunca conto todos os detalhes, porque nem sou capaz. É um papel", sublinha.

Anabela acrescenta que, no caso de uma patente de um produto farmacêutico ou de um produto químico, é igual.

"A primeira vez que escrevemos uma patente, se calhar nem sabemos todos os detalhes. As coisas vão evoluindo. Por isso há detalhes que, se calhar, não estão lá e nem é por maldade", afirma a especialista.

"Lembra-se que temos de ter novidade, então estou com tanta pressão para depositar o pedido, que dou os detalhes que sei naquela altura. Normalmente são os mais relevantes, são suficientes para alguém reproduzir. Eu posso não ter lá o meu 'best mode'. E o 'best mode' pode fazer toda a diferença", considera.

Por isso, a agente de propriedade industrial prefere o caminho da diplomacia. "Eu acho que se não for voluntário, podemos estar a perder algo mais".

"Com um acordo teríamos uma qualidade muito mais rápida em menos tempo, porque qual é o objetivo aqui? Parece-me que é conseguirmos vacinar um maior número de pessoas no mais curto espaço de tempo. E isso, sinceramente, eu só acho que se faz cooperando".


Que patentes vão ser levantadas? Só a das vacinas ou outras patentes por trás?

Por outro lado, levantar a patente da vacina pode significar ter de levantar outras patentes anteriores.

"A patente do RNA tem muita tecnologia por trás. A primeira coisa que eu me pergunto é: quais vão ser as patentes que vão ser levantadas? Esta vacina ou alguma outra por trás, de um reagente, de um reator, também essas vão ser levantadas?", questiona.

Anabela explica que num sistema produtivo, "se eu tiver uma patente de um reagente que posso fazer com que não consigamos chegar ao produto da reação". Por isso, levantar a patente da vacina poderá não chegar.

Caso fosse levantada a patente, podia-se fabricar logo mais vacinas?

Mesmo com os direitos de patente suspensos, os fabricantes não podem passar à frente a fase de ensaios clínicos para fazer aprovar o seu produto.

O que significa que a farmacêutica que produzir o "genérico" das vacinas já existentes terá de passar pela fase dos de testes farmacológicos e toxicológicos, dos ensaios pré-clínicos e clínicos - ou seja, demorará, pelo menos, cerca de um ano a conseguir aprovar a nova vacina, se o fizerem no mesmo tempo recorde que as vacinas existentes.


Antes dessa fase, será ainda necessário montar instalações capazes de fazer esta produção em massa e conseguir autorização do regulador para a produção da vacina. Algo que também poderá demorar vários meses.

Além disso, há que resolver a questão das matérias-primas.

"Acho que as matérias-primas da vacina da Pfizer vêm 19 países diferentes. Há barreiras de importação, exportação que têm que ser também negociadas", lembra Anabela Carvalho.

Por quanto tempo seriam levantadas as patentes?

A especialista levanta outra questão: por quanto tempo irão os estados levantar as patentes da Covid-19?

Os governos podem suspender, temporariamente, os direitos de propriedade intelectual relativos a determinada invenção, mas têm de definir um período durante o qual a suspensão é válida.

"Se for muito curto o tempo, ninguém vai querer investir milhões numa instalação farmacêutica para produzir só um ano", prevê a especialista.

Por outro lado, se o período for longo, põe-se outra questão: se for necessário desenvolver novas versões da vacina para as variantes que surgiram, as farmacêuticas poderão ver menos vantagem nesse trabalho.

Qual é, então, a solução para a falta de vacinas em países em desenvolvimento?

Para Anabela Carvalho, a solução para o problema que levou à discussão do levantamento de patentes - a escassez de vacinas em países em desenvolvimento - passa pela solidariedade internacional.

"Se queremos ter imunidade de grupo, vamos ter todos que doar, em termos sociedade", considera a cientista.

Para a especialista, a discussão do levantamento de patentes não acrescenta valor e atrasa a verdadeira discussão. "Mais vale discutirmos isto rápido", remata.

Na última semana, o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou que apoiava a suspensão das patentes das vacinas contra a Covid-19, uma proposta que tinha sido inicialmente avançada pela Índia e pela África do Sul na Organização Mundial do Comércio.

Ainda que políticos europeus, como a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ou o Presidente francês, Emmanuel Macron, se tenham mostrado disponíveis para debater a proposta, o governo alemão já se opôs à ideia, assinalando que "o fator limitativo na fabricação de vacinas é a capacidade de produção e os elevados padrões de qualidade, não as patentes".

Na segunda-feira, o primeiro-ministro, António Costa, considerou "injustas" as teses que culpam a Alemanha pela posição menos aberta da União Europeia face ao levantamento das patentes das vacinas contra a Covid-19, salientando que a maioria dos Estados-membros segue idêntica linha.

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