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Opinião de Graça Franco
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​Biden precisou de 48 anos, mas surpreendeu!

07 mai, 2021 • Opinião de Graça Franco


Em plena pandemia, com uma crise económica ainda a dar os primeiros passos e os mortos a fazerem parecer menores os problemas dos milhões que “só“ perderam o empregou ou “apenas” mergulharam na pobreza, é bom constatar que, depois da versão colorida da loucura, o mundo é agora empurrado pela força da experiência grisalha de um homem comum.

Pode um velho político profissional, com quase 50 anos de carreira ininterrupta, e perto de 80 de idade, ainda surpreender?! Sobretudo se o faz debaixo da pesada herança de Trump, uma vergonha universal que quase colocou o país mais poderoso no mundo no papel de idiota “inútil”, para não dizer num dos países mais imprevisíveis e perigosos da cena internacional? Pode. Biden fê-lo esta semana, e mais uma vez conseguiu ultrapassar a Europa num golpe de mestre, voltando a sentar a América, no “topo da mesa” de todas as negociações mundiais.

Pena fazê-lo logo na véspera da Cimeira Social, que podia permitir encerrar em beleza uma presidência portuguesa totalmente obscurecida pela questão pandémica. Se o compromisso social acabasse por ultrapassar as palavras bonitas e estabelecesse pelo menos metas credíveis, atribuindo verbas suficientes, estava salva a honra do convento. Já bastava Portugal, por estes dias, trazer nas primeiras páginas dos jornais nacionais um “case study” de clara violação de tudo o que a Europa devia preconizar. Odemira além do tráfico humano traz à colação a existência de pura exploração esclavagista no país hospedeiro. Não precisava ser tão mau.

Azar de Costa. Injustiça para a Europa. O único continente que até agora, além de ter conseguido vacinar quase 200 milhões de cidadãos, já conseguiu exportar para praticamente o mundo inteiro, outros 200 milhões das mais diversas proveniências.

Hoje, antes mesmo de começar a discutir a 27 alguns dos maiores avanços no chamado 3º Pilar da Europa Social e os Direitos dos Trabalhadores, com o tema agora introduzido pelos Estados Unidos, com a súbita subscrição por parte da administração Biden da velha proposta de “suspensão temporária” de patentes das vacinas contra o Covid, de forma a permitir a maximização da capacidade de produção mundial em todos os países e continentes, a agenda europeia passará para segundo plano. Temo que, tal como na crise do “sofá”, a falta de jeito de Charles Michel, ao aceitar começar a estudar uma posição comum no Porto, seja mais uma vez o tipo de gaffe imperdoável.

Para máxima ironia, mesmo se excluirmos a era Trump, dos movimentos sem máscara aos negacionistas bárbaros da invasão do capitólio e incluindo os quase quatro meses de estado de graça da nova administração, as metas incríveis na vacinação autóctone dos americanos foram até agora conseguidos à custa do mais puro estilo “American First” porque o país não exportou, ao que parece, ao que se sabe, uma única dose mesmo para os vizinhos mais próximos como o Canadá ou o México, para se apresentar agora como assumindo a liderança dos que querem levar a vacina a todo o Planeta. A Europa, pelo menos, é o exemplo contrário.

Além disso, a posição americana não é mais do que um híper-agendamento de uma questão “fulcral para as pessoas” mas da qual, em rigor, nem pode reivindicar a paternidade, porque vem na sequência da reentrada do país como parceiro essencial na OMS. A par da China e da Índia, no quadro da Organização Mundial de Comércio (onde a questão acabará por ter a decisão final!), tem sido até aqui a Organização Mundial de Saúde a fazer eco da possibilidade de acionar desde já uma exceção pela sua congénere comercial “para situações de emergência” no acordo dos direitos de propriedade intelectual (TRIPS).


Resumindo: Ao dizerem que estão abertos à negociação de uma matéria em que os americanos sempre fizeram finca-pé em não ceder (“os direitos de propriedade intelectual dos produtos farmacêuticos”), os Europeus são forçados a escolher, já, o lado do qual vão querer ficar. A França, a Itália e a Espanha vieram antes mesmo de iniciada a cimeira fazer coro com os Estados Unidos mostrando a simpatia pela proposta o facto é que, tal como a Suíça, o Reino Unido e o Japão, a própria Europa, como um todo, nunca defendeu posição muito diferente no quadro da OMS.

Mesmo assim a verdade é que se espera que no Porto, este Sábado, a questão venha a sobrepor-se a decisões concretas na área social, onde muitos pontos (desde o salário mínimo europeu comum – que hoje varia entre pouco mais de 300 euros e os 2 mil e muitos!), na questão do verdadeiro combate à pobreza, exigem um foco comum que está muito longe de gerar unanimidades.

Não por acaso, se especulava, já ontem, com a ausência presencial da chanceler alemã no Porto devido à sua conhecida defesa dos direitos de propriedade intelectual do poderoso lobby industrial farmacêutico alemão. Uma posição que partilha com a sua coligação de origem (CDU/CSU), mas que não é unanime no seu próprio Governo com destaque para o SPD ou os Verdes

Seja como for a mudança da estratégia diplomática americana pós-Trump reforça a ideia de que, afinal, mesmo em pouco mais de 100 dias de posse no cargo, um homem até há pouco conhecido pelo único mérito de “saber fazer pontes” pertencente à ala mais moderada dos Democratas, numa altura em que era preciso piscar o olho aos republicanos anti-Trump e tido como o cinzentão mais conhecido dos Estados Unidos, pode acabar com o anátema de que os políticos são basicamente iguais.

Um número dois por excelência, cujo período áureo começara em 1973 como senador de Delaware , com direito à reforma dourada de oito anos de serviço na vice-presidente de Obama (um dos mais carismáticos líderes mundiais,) ainda por cima com o estigma de “católico”, que todos achavam eleito presidente apenas por ter encontrado em Kamala Harris, da ala mais radical do partido, a vice-presidente ideal para repor em versão feminina o mito obamanista, na versão politicamente mais correta. Pode arregaçar as mangas e partir para o combate.

Esse homem que muitos viam, e faço mea culpa, porque também o julguei assim, apenas como o “mal menor" perante o “péssimo” do passado trumpista, não só consegue surpreender mostrando que a vida (mesmo dos políticos mais vividos e conhecedores do sistema) não acaba aos 80, como até pode começar aí.

Em plena pandemia, com uma crise económica ainda a dar os primeiros passos e os mortos a fazerem parecer menores os problemas dos milhões que “só“ perderam o empregou ou “apenas” mergulharam na pobreza, é bom constatar que, depois da versão colorida da loucura, o mundo é agora empurrado pela força da experiência grisalha de um homem comum.

Kamala até pode vir a suceder-lhe. Mas Biden nunca aceitará o rodapé dos descartáveis. Só temo que uma boa ideia, que levará ainda muito tempo a percorrer o seu caminho, mas fará do mundo um lugar melhor, possa, por questões de agenda, vir a custar o sucesso de uma Cimeira de que a Europa precisava, com caráter de emergência. Vide o cancro de Odemira.

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  • Maria Oliveira
    07 mai, 2021 Lisboa 21:10
    Excelente artigo. Sempre acreditei que Joseph Biden seria bem sucedido como presidente dos EUA. Por duas razões: tem uma longa experiência política (presidiu ao comité de Relações Exteriores do Senado durante mais de vinte anos); é um homem bem intencionado, com genuínas preocupações sociais. A Europa tem muito que aprender ...