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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Caos e claridade

23 abr, 2021 • Opinião de Henrique Raposo


O temor perante o caos é fundamental. Sem caos não há vida, fé ou arte. Como diz Zambujo, “quando se pensa numa música também tem de se pensar num bocadinho no caos, não pode ser só passarinhos”.

Na entrevista à revista do ‘Expresso’ da semana passada, António Zambujo invocou a sensação de caos da música de Tom Waits. A ideia não me saiu da cabeça, porque é isso mesmo: a “cavernosidade da voz” do Waits leva-nos para a soberania do caos. A voz do Waits é primordial, primitiva, é pré-Génesis. Imaginem que, na Bíblia, antes do Génesis, havia um livro sobre o caos aleatório de um mundo não criado. A voz desse livro podia ser a do Waits. É uma voz que assusta pelo caos e medo que lança sobre nós. É um medo que vem de um mundo não ordenado, ou não criado por Deus, ou não civilizado pela humanidade.

Estou a ler o “Absalão, Absalão” do Faulkner. A personagem central, Supten, podia ter como banda sonora este Waits caótico. Supten entra na vila imaginária de Faulkner, Yoknapatawpha, vindo dos confins da natureza, dos confins do faroeste; entra no estado de direito com todo o mistério violento do estado da natureza; mesmo quando não é violento, sentimos essa tensão no ar, essa capacidade para gerar caos. Se querem uma versão mais moderna de Supten, procurem a personagem de Tom Hardy na série “Taboo”: James Delaney entra na Londres vitoriana com esse sentido de caos que assusta a civilização.

Se Waits é o caos do mundo que ainda não conheceu a Revelação, quem é que podia simbolizar um mundo onde sentimos a certeza dessa Revelação? Há muitos candidatos, mas pensei logo no Nick Cave. A serenidade da voz do Cave é o oposto da rugosidade cavernosa de Waits. Quando preciso de paz e conforto, quando preciso de voltar a sentir aquela frase de Jesus, “não temais”, o Cave é um dos portos seguros. Garante-me a claridade de que preciso.

Quer isto dizer que um crente deve preferir a música que lhe traz a certeza da graça? Não. O temor perante o caos é fundamental. Sem caos não há vida, fé ou arte. Como diz Zambujo, “quando se pensa numa música também tem de se pensar num bocadinho no caos, não pode ser só passarinhos”. A nossa acção no mundo, seja limpar uma fralda ou escrever um poema, é quase sempre um esforço por arrumar a casa depois do caos provocado por forças muito superiores e que escapam à nossa capacidade de entendimento.

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