Tempo
|

Manuel Carmo Gomes

"Se continuarmos com o desconfinamento como se nada fosse, muito provavelmente vamos ter uma quarta vaga"

14 abr, 2021 - 09:00 • Hélio Carvalho

Os dados apresentados na reunião do Infarmed na terça-feira assustam Manuel Carmo Gomes, um dos investigadores responsáveis pelo relatório de recomendações enviado ao Governo, que culminou na matriz que regula o desconfinamento. O epidemiologista acredita que o país deve "abrandar", sob risco de correr atrás do prejuízo.

A+ / A-

Veja também:


Foi crítico do Governo em várias ocasiões e foi um dos especialistas consultados para escrever as recomendações que levaram à apresentação do plano de desconfinamento do Governo e à famosa matriz. Agora, o epidemiologista Manuel Carmo Gomes pede um abrandamento do desconfinamento, perante o crescimento do índice de transmissibilidade, ou R(t).

Na reunião do Infarmed realizada na terça-feira, os especialistas alertaram que o R(t) e a incidência estão a crescer desde fevereiro e que Portugal poderá chegar, dentro de duas semanas, aos 120 casos por 100 mil habitantes a cada 14 dias, caso o ritmo atual se mantenham. Mas Carmo Gomes avisa, em entrevista à Renascença, que um crescimento que pode parecer lento poderá também ficar descontrolado muito rapidamente.

"No Infarmed foi mencionado que estamos uma incidência moderada. Tudo bem, estamos com cerca de 70 casos por 100 mil habitantes, mas temos vindo assistir a um aumento constante que de início parece lento, mas de repente dispara. E quando ele disparar, nós não teremos controlo na situação", realça o professor de epidemiologia da Universidade de Lisboa.

Carmo Gomes diz que o país "já passou por este filme" durante os meses de setembro e outubro, quando o aumento da mobilidade levou à segunda vaga em novembro. Daí que o especialista agora recomende que se atrase o atual plano de desconfinamento, para primeiro controlar o R(t).

"Nós já passámos por isto, nós já vimos este filme, portanto, nós já sabemos o suficiente para emendar a rota. É altura de pausar e controlar o R(t) com as outras armas de que nós dispomos: a testagem em massa, o rastreamento rápido em menos de 24 horas dos contactos dos novos casos e o registo no SINAVE dos novos casos diagnosticados. Temos de travar esta subida do R(t) antes que isto entre numa situação em que deixa de haver controlo", diz.

O epidemiologista salienta que o plano deve ser de "adiar para ganhar tempo", mas não de "desistir" do plano de desconfinamento. Se o Governo não adiar as próximas fases de desconfinamento e se a população continuar com uma "falta sensação de segurança", Manuel Carmo Gomes teme o pior.

"O perigo deste vírus é que em situações como aquela em que nós estamos agora, as pessoas têm uma falsa sensação de segurança de que isto está sob controlo, que é aquilo que parece agora. Mas é que não está! Agora vamos a tempo, mas se nós deixamos passar umas semanas e se, pior ainda, continuarmos com o desconfinamento ao ritmo a que ele está calendarizado como se fosse nada, nós muito provavelmente vamos ter uma quarta vaga", prevê o cientista.

Além disso, diz Carmo Gomes, a Covid-19 mesmo não matando ou hospitalizando tanto como em janeiro - graças à vacinação já avançada na faixa etária acima dos 80 anos - continua a ameaçar a população e "até as pessoas assintomáticas têm sequelas".

Um eventual descontrolo da pandemia pode também danificar a imagem de Portugal, que voltou a ser dos países com os números mais baixos da Europa. Para o epidemiologista, uma quarta vaga "vai dar cabo da imagem do país, em vésperas de verão, e nós não queremos isto".

"Queremos ter a imagem de um país com uma epidemia controlada, em vésperas de verão. Se resvalamos para o descontrolo, está o caldo entornado."

Estrutura é boa mas faltam vacinas

Manuel Carmo Gomes também coloca dúvidas ao ritmo de vacinação pretendido pelo vice-almirante Gouveia e Melo, coordenador da "task force" da vacinação para a Covid-19, que tem afirmado que Portugal atingirá as 100 mil vacinações por dia.

O professor de epidemiologia da Universidade de Lisboa elogia o trabalho da "task force" e a estrutura existente, mas lamenta a falta de doses. Para Carmo Gomes, sem ovos não se fazem omeletes.

"Temos de ter paciência e segurar a situação para ganhar tempo"

"Nós portugueses temos muita experiência de vacinação, temos um dos programas nacionais de vacinação de maior sucesso do mundo, temos pessoal especializado da enfermagem muito capaz de levar esta tarefa a cargo, estamos bem coordenados pelo vice-almirante e pela 'task force'. O problema são as vacinas!", vincou o cientista, que acrescentou que "as intenções e a nossa estrutura montada podem ser as melhores, mas nós precisamos de vacinas."

O comentário surge também depois de mais um "revés" no programa de vacinação, com a notícia de que a Johnson & Johnson iria suspender a distribuição de vacinas na Europa, devido a casos de coágulos sanguíneos.

Ainda não chegou nenhuma dose desta vacina a Portugal. Estava prevista a entrega de 30 mil doses na quarta-feira, dia 14 de abril, com mais 1,9 milhões a serem entregues até ao final de abril, antes de ser conhecido o adiamento da entrega da vacina desenvolvida pela Janssen, a farmacêutica do grupo da empresa americana. Está previsto que Portugal receba 4,5 milhões de doses em 2021.

Para Carmo Gomes, reconhece que o atraso no programa de vacinação, sem "culpas nossas", dificulta o processo de colocar a faixa etária acima dos 60 fora de perigo, mas esse atraso é mais um motivo para suspender a próxima fase de desconfinamento.

"Nós devíamos ter terminado a fase 1 em março, não terminamos porque as vacinas não chegaram na quantidade necessária, e portanto temos de ter paciência e temos de segurar a situação para ganhar este tempo", afirma Manuel Carmo Gomes.

Internamentos acima dos 60 anos são motivo de preocupação

O atraso na vacinação da população e na corrida à imunidade de grupo são um risco acrescido para as faixas etárias mais velhas. Para o epidemiologista, a vacinação, a presença da variante inglesa "que vai dominar isto tudo" e o ritmo de desconfinamento provocarão uma subida de casos superior ao ritmo de vacinação. E quem vai sofrer mais com isso são as idades mais avançadas.

Para se justificar, Manuel Carmo Gomes explica o risco que determinadas faixas etárias correm de ter um infeção que dê origem a uma doença grave e, como tal, precisem de passar pelo internamento em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI).

Segundo o cientista, "dos zero aos 19 anos, nós assistimos durante o ano de 2020 a 52 internamentos em UCI por 100 mil casos, muito pouco; dos 20 aos 39 anos, 112 internamentos por 100 mil casos, já aumentam significativamente; quando vamos para os 40 a 59 anos, temos 612 internamentos em UCI por 100 mil casos; quando vamos para os 60 a 69 anos, temos 2314 entradas em UCI por 100 mil casos. Ora, esta faixa etária está longe de estar coberta pela vacinação", alerta Carmo Gomes.

Segundo o último relatório de vacinação do Governo, 90% da população com 80 anos ou mais já recebeu pelo menos uma dose (e mais de metade está totalmente inoculada), o que representa "uma boa cobertura, e estamos a caminho de ter uma boa cobertura acima dos 70 anos, onde de facto o risco de entrada em UCI é muito maior".

No entanto, a luta está longe de estar terminada e o professor de epidemiologia quer um ritmo mais acelerado, porque "ainda temos grupos etários muito largos que aguardam vacinação e têm um risco de entrada em UCI que não é desprezível."

Plano de desconfinamento não é injusto para concelhos mais pequenos

Durante a reunião do Infarmed, o matemático Óscar Felgueiras sugeriu que fosse também analisado e criado um índice de “incidência vizinha”.

Isto serviria para dar mais informações sobre concelhos que, apesar de terem poucos casos, apresentam elevadas taxas de incidência por terem uma população mais pequena e, como tal, não podem avançar no plano de desconfinamento. E também serviria para alertar para o risco associado à proximidade de zonas mais críticas.

Manuel Carmo Gomes, da sua parte, diz ter “muita confiança no doutor Óscar Felgueiras” e afirma que confia na “intuição que ele desenvolveu e em princípio ele terá razão”.

Mas o professor na Universidade de Lisboa não deixa de apontar um dedo aos autarcas desses concelhos, como Vimioso, Moura ou Carregal do Sal, que acusam a matriz apresentada pelo Governo de desfavorecer locais com baixa densidade populacional.

Carmo Gomes reconhece que “se a população for mais pequena, não são necessários tantos casos para termos um indicador com um nível muito alto”, mas salienta que é preciso controlar os surtos e analisar a sua natureza

“Uma coisa num concelho de baixa densidade é termos os casos relativamente restringidos, por exemplo, a um lar ou a um agrupamento social que está bem delimitado, cujos contornos nós conhecemos e é relativamente fácil controlá-lo. Outra coisa é ter os casos disseminados na população”, explica o epidemiologista.

Saiba Mais
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • GRAÇA PEREIRA
    14 abr, 2021 PEDRAS PRETAS 17:44
    PARECE QUE O DESCONFINAMENTO EM PORTUGAL NÃO ESTÁ A RESULTAR. HÁ AUMENTOS DE CASOS! TEMOS DE VOLTAR A CONFINAR PORQUE AS PESSOAS INFELIZMENTE NÃO RESPEITAM AS REGRAS E CLARO UNS PAGAM PELOS OUTROS.

Destaques V+