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Tu confinas, ele inspira, nós não voamos. E a qualidade do ar melhora (para já)

08 abr, 2021 - 09:00 • Fábio Monteiro

Em Portugal, a poluição do ar causa cerca de seis mil mortes por ano. É, por isso, “absolutamente crucial perceber a relação entre as partículas poluidoras e o pulmão”, diz António Morais, Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Durante a pandemia, houve melhorias significativas nas emissões em várias regiões do país. Para tal, poderá ter contribuído o abrandamento do turismo, diz a investigadora Myriam Lopes. Tudo pode, contudo, muito em breve, voltar aos velhos números. É isso que já está a acontecer fora da Europa.

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Eis duas ironias da pandemia: nunca andámos tão preocupados com o que respiramos, com a inalação de gotículas, por causa do novo coronavírus, mas, ao mesmo tempo, nunca a qualidade do ar foi tão boa; e se é verdade que o abrandamento do turismo gerou um buraco na economia e emprego em Portugal, essa travagem está também a dar um contributo para a redução da poluição atmosférica.

De acordo com os dados do portal “Qualar – Informação sobre a qualidade do ar”, da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), em 2019, na Área Metropolitana de Lisboa Norte, houve 82 dias em que a qualidade do ar foi avaliada como Muito Bom, 214 Bom, 54 Médio e 15 Fraco. Já em 2020, houve 90 dias Muito Bom, 208 Bom, 62 Médio e 5 Fraco.

Na região do Algarve em 2019, 107 dias tiveram a classificação Muito Bom, 141 Bom, 111 Médio e 1 Fraco, números positivos, por comparação com outras regiões do país, mas que ainda assim melhoram de forma significativa em 2020: 158 dias Muito Bom, 128 Bom, 58 Médio e também 1 Fraco.

Os números, diz-se, não mentem. “O problema é que nós não estamos a usufruir dessa qualidade do ar. Pensei isso logo no primeiro confinamento. Mas os animais aproveitaram e nós hoje conseguimos ouvir muito mais os passarinhos, a biodiversidade invadiu mais as cidades. De facto, se tiramos os humanos da equação e os danos negativos da atividade humana, houve aqui uma recuperação”, diz Myriam Lopes, docente da Universidade de Aveiro e especialista em poluição do ar, à Renascença.

A investigadora é uma das autoras do estudo “Turismo e Qualidade do Ar durante a pandemia da Covid-19: Lições para o Futuro”, publicado no início de abril, no âmbito do projeto de investigação ARTUR, cujo objetivo principal é avaliar o impacto do turismo na qualidade do ar. “O turismo em Portugal é uma fonte de receita importante, é um dinamizador da economia, mas atrás do turismo vêm uma série de atividades, principalmente ao nível do transporte - não só o aéreo -, que têm impacto na qualidade do ar”, explica.

Boas notícias?

O estudo “Turismo e Qualidade do Ar durante a pandemia da Covid-19: Lições para o Futuro” foca-se no período entre janeiro e setembro do ano passado, nas regiões de Lisboa e do Algarve, e aponta que “houve melhorias significativas” na qualidade no ar. “O impacto começou-se a sentir principalmente quando cortaram os voos, a partir de abril há uma descida muito significativa”, nota Myriam Lopes.

No caso da Área Metropolitana de Lisboa (AML), em certos dias, houve uma redução de 47% das emissões de dióxido azoto (gás associado à indústria e meios de transportes); já ao nível das partículas, registou-se uma quebra de 40%.

No mesmo período, no Algarve, região com ligações mais profundas ao setor do turismo, a quebra de emissões de dióxido de azoto chegou aos 60%, mas ao nível das partículas foi apenas de 27%. Como é que isto se explica? “As partículas não reduziram tanto, porque depois há a combinação de outros fenómenos, nomeadamente as emissões naturais e o transporte de poeiras de origem natural, do norte de África, que afeta muito mais o Algarve que a zona de Lisboa.”

O retrato conjurado por Myriam Lopes não é perfeito. Os portugueses não passaram todos, de repente, a dar as mãos e cantar o kumbaya ambiental. Os indicadores compilados apontam diferenças do primeiro confinamento, “quando toda a gente ficou fechada em casa”, com os meses seguintes e em particular o período do verão.

“O que nós vemos é que entre julho e agosto os níveis de dióxido de azoto até aumentaram face ao período homólogo anterior. Quando as pessoas deixaram de sentir que estavam presas, os níveis [de emissões] pioraram”, aponta.

Aeroporto fechado, pulmão saudável

Durante os últimos doze meses, os aeroportos nacionais viram o tráfego aéreo cair a pique. Uma má notícia para a economia, mas uma boa para o ambiente - pelo menos, ao nível das partículas ultrafinas. “Acredito que, como temos menos aviões a voar, a descolar, a fonte está reduzida. Em princípio, deve ter reduzido significativamente a concentração de partículas ultrafinas ali nos arredores do aeroporto”, diz Margarida Lopes, do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade (CENSE), à Renascença.

A investigadora dedica-se há muitos anos a estudar e monitorizar a concentração de partículas ultrafinas na área circundante ao aeroporto Humberto Delgado. Num estudo publicado em 2019, assinalou que existia relação clara entre os movimentos aéreos e os níveis de partículas ultrafinas (UFP): a concentração era até 26 vezes mais elevada nas áreas de Lisboa influenciadas pela atividade aérea.

Desde março do ano passado, Margarida não regressou ao terreno, por isso não tem números recentes relativamente ao nível de partículas ultrafinas que circulam agora no ar. “É de esperar” uma redução, mas a dimensão da mesma “é difícil concretizar”, já que os aviões não são os únicos emissores. “O tráfego rodoviário também é significativo ali na zona do aeroporto, com a segunda circular”, diz.

Segundo o mesmo estudo datado de 2019, locais como o bairro de S. Francisco, Charneca do Lumiar ou a periferia do Campo Grande são espaços especialmente vulneráveis às concentrações de UFP. Este detalhe é importante porque há cada vez mais provas de que a exposição prolongada a UFP pode induzir ou agravar as condições de saúde pulmonar. Ou seja, quem mora nessas áreas está – em teoria – numa situação mais vulnerável à Covid-19.

Porventura, um dia, alguém poderá vir a tentar perceber como variaram os índices de mortalidade naqueles bairros, por comparação com outras áreas de Lisboa. (No último ano, foram publicados alguns estudos que indiciam que existe uma relação entre poluição atmosférica e o índice de mortalidade do novo coronavírus – ou melhor, que o primeiro fator amplifica o segundo.)

“Tudo o que sabemos da pandemia, que é pouco, aponta para que as pessoas mais com uma saúde mais débil são aquelas que acabam por ter problemas mais graves. Portanto, se já tiverem o aparelho respiratório mais débil, a hipótese faz sentido”, diz Margarida Lopes, ressalvando que é apenas uma “especulação”. Mas acrescenta: “provavelmente, vai haver alguém que vai investigar isso”.

Doenças respiratórias e poluição

Em Portugal, a poluição do ar causa cerca de seis mil mortes por ano, segundo a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). (Numa lista de 41 países, Portugal aparece entre os dez melhores.) Este número, claro, é referente ao período anterior à pandemia – o que devia deixar muitas pessoas preocupadas, principalmente aquelas com doenças respiratórias.

De acordo com um estudo publicado na revista científica “Cardiovascular Research” no ano passado, cerca de 15% das mortes causadas pela Covid-19 ao nível mundial, durante o mês de junho, podiam estar relacionadas com a sinérgica negativa entre a poluição do ar e o vírus.

Talvez seja pouco intuitivo, mas o pulmão é “um órgão que está em contacto com o ambiente, de maneira que um ar poluído exerce um efeito negativo imediatamente”. Ou seja, um asmático, num ambiente poluído, “tem mais sintomas e mais exacerbações. Tem mais períodos de agravamento da sua doença”, diz António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPA), à Renascença.

“Nós sabemos que o tabaco e a poluição são as maiores causas de morte por doença respiratória, mas são também as maiores causas que podem ser modificadas. De maneira que é absolutamente crucial perceber a relação entre as partículas poluidoras e o pulmão, de forma a ter também uma maior precisão na intervenção que depois se faz a nível do ambiente”, explica.

António Morais lembra que “é sabido que a poluição agrava as doenças respiratórias”, mas que ainda faltam saber elementos na equação para se estabelecer uma ligação direta entre as mortes, a poluição do ar e a Covid-19. “Nós sabemos que há um dano, sabemos que esse dano é significativo para a qualidade de vida e para a sobrevida das pessoas, mas não conseguimos ter uma ideia exata de como isso se processa, e seria muito importante”, explica.

“É possível - estou a especular - que um maior índice de poluição crie condições que tornem o indivíduo mais sensível ou em maior risco de ter uma infeção e de essa infeção poder ser mais grave.” Ao mesmo tempo, lembra o Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, “os ambientes de maior poluição são também ambientes onde há mais trabalho, mais gente, períodos em que as pessoas estão mais juntas umas das outras e obviamente que esse meio também tem as condições de maior risco de transmissibilidade do que, por exemplo, num meio mais rural que está habitualmente associado a um ar com mais qualidade”.

Regresso ao (mau) passado

As imagens de satélite têm uma vantagem a comunicar: conseguem expressar grandes verdades de forma simples e sucinta. Ora, as fotografias do que está a acontecer na China, divulgadas pela Agência Espacial Europeia (ESA) há três semanas, foram o despertar do transe de que a pandemia tinha mudado o espírito industrial planeta.

Os dados recolhidos pelo satélite Copernicus Sentinel-5P mostram que, se as emissões de dióxido de azoto caíram em 2020, o ano corrente segue já uma narrativa muito diferente. Por exemplo: em Pequim, as concentrações de dióxido de nitrogénio caíram cerca de 35% entre fevereiro de 2019 e 2020, mas em fevereiro de 2021 já voltaram para níveis anteriores aos da pandemia.

“Esperávamos que a poluição do ar se recuperasse à medida que os bloqueios fossem suspensos em todo o mundo”, disse Claus Zehner, coordenador da missão Copernicus Sentinel-5P da ESA, em comunicado. O que está a suceder na China – “a fábrica do mundo” - é um mau prenúncio. “Nas próximas semanas e meses, esperamos aumentos nas concentrações de dióxido de nitrogênio também na Europa”, avisou também Claus Zehner.

Nem o pneumologista António Morais nem a investigadora Myriam Lopes advinham um futuro de ar puro, com zero emissões. “A pressão sobre o ambiente vai existir sempre, não tenhamos ilusões. Depois de sairmos desta situação terrível em que estamos, as economias vão exigir muito esforço, temos de caminhar para indústrias que sejam eficazes, que promovam riqueza, que deem trabalho, mas que sejam ao mesmo tempo não poluidoras. Estas duas coisas têm que andar em paralelo”, diz o presidente da APA.

Já a especialista em poluição do ar acredita que “a pandemia vai deixar um rasto na mudança de comportamentos”. Agora, isso não deverá significar “um regresso ao período pré-industrial”. Assim que a vacinação aumente, “o turismo vai acelerar. As pessoas são ávidas de sair.”

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