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Morreu o teólogo Hans Küng

06 abr, 2021 - 17:00 • Filipe d'Avillez

Küng foi uma figura importante no Concílio Vaticano II, mas com o passar dos anos ficou desiludido com o ritmo da reforma da Igreja e as suas posições e críticas levaram a hierarquia a impedi-lo de ensinar.

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Morreu esta terça-feira, aos 93 anos, o teólogo suíço Hans Küng.

A notícia foi avançada pela Conferência Episcopal Alemã nas redes sociais. Küng vivia há muitos anos na Alemanha.

Hans Küng foi uma das figuras de destaque do Concílio Vaticano II, em que participou na qualidade de perito, mas acabou por ficar desiludido com o ritmo das reformas e as suas posições críticas para com a hierarquia e contrárias à tradição e doutrina da Igreja levaram os papas a impedi-lo de ensinar teologia católica, embora tenha continuado ligado à Universidade de Tübingen, na Alemanha, a ensinar Teologia Ecuménica.

O teólogo João Duque, pro-reitor da Universidade Católica Portuguesa e professor na Faculdade de Teologia, em Braga, diz que a caracterização de Küng como uma referência da ala progressista pode pecar por limitada, mas que não é desadequada. "Há que o enquadrar também na ocasião em que ocorreu o seu processo, que o levou a ser colocado fora da lecionação de teologia em Tübingen e portanto, na ocasião, quase que condenado pela Igreja Católica. É certo que daí para cá já passou muito tempo e quando eu estive a estudar na Alemanha via-o muitas vezes em programas televisivos em representação não oficial, mas oficiosa da Igreja Católica, e defendendo as posições da Igreja Católica em discussão com participante de outras religiões, ou ateus."

"Nesse sentido a representação da ala progressista da Igreja deixou de estar tão claramente ligada a Hans Küng e ultimamente não era propriamente a sua marca. Digamos que há perspetivas progressistas na Igrejas mais progressistas que as de Hans Küng que, como veterano teólogo já estaria mais ou menos a meio, numa posição mais equilibrada", diz.

O ponto da discórdia, que levou a que fosse investigado e eventualmente impedido de lecionar teologia católica, foi um livro que escreveu sobre a infalibilidade papal, que contestava. "Isso colocou-o de facto numa perspetiva crítica em relação à Igreja enquanto instituição, mas corresponde bastante ao núcleo de teólegos alemães que não foram avisados ou condenados na ocasião, mas que partilhavam da sua posição, simplesmente não sei porquê, por temperamento ou pelo próprio livro, na ocasião ele foi o alvo mais direto das repreensões. Diria que não é o representante de um progressismo muito progressista na Igreja neste momento, mas correspondeu à posição de um conjunto de teólogos alemães que podem ser considerados progressistas, entre os quais poderíamos situar o que entretanto foi feito cardeal, Walter Kasper, por exemplo."

Bento XVI, que conhecia Küng há muitos anos - foram professores na mesma universidade, e foi Küng quem convenceu a instituição a nomear Ratzinger para lecionar Teologia Dogmática - ainda tentou uma reaproximação, mas esta não deu frutos e Küng chegou a acusar o Papa de se "afastar o povo de Deus" pelas suas aproximações à Sociedade de São Pio X, sugerindo que o ato poderia colocar Bento XVI na situação de cismático.

Num texto publicado num jornal alemão, o Sudwest Press, Kung referiu-se aos tradicionalistas, que recusam certas reformas do Concílio Vaticano II, de serem “ultra-conservadores, anti-democráticos e anti-semitas” e considerou que uma eventual reconciliação afastaria Bento XVI “ainda mais do Povo de Deus”.

Em vez de se preocupar com os tradicionalistas, Bento XVI devia “preocupar-se com a maioria de católicos reformistas” e reconciliar-se com as “Igrejas da reforma e o movimento ecuménico”, disse Küng, referindo-se às Igrejas protestantes.

"O encontro e desencontro com Bento XVI foi mais noticiado porque ambos partilharam o mesmo momento teológico, precisamente o momento em que Bento XVI era professor de Teologia também, e teve um conflito com alguns teólogos de Tübingen, sobretudo com uma tendência denominada Nova Teologia Política, mas embora Küng não fosse propriamente dessa corrente teológica estava afim e portanto diríamos que enfrentamento com Küng já vinha detrás e vinha da vida teológica e de professor de Ratzinger", diz João Duque.

"A tentativa que Bento XVI teve de se aproximar de uma ala mais progressista e ao mesmo tempo de uma ala mais conservadora como as tendências mais pró-lefebvrianas revelam uma tentativa de conciliação dentro do espaço da Igreja Católica que não é fácil nem é talvez possível, e por isso aí Küng manteve-se fiel a ele mesmo na medida em que recusa a pertinência das posições pró-lefebvrianas, ou mais tradicionalistas, e pronto, compreende-se essa reação de Küng. Não é que a frustração dessa reaproximação signifique que as posições de Küng sejam inaceitáveis na perspetiva da Igreja."

Já no pontificado do Papa Francisco não houve uma repetição dessa tentativa de aproximação. João Duque diz que tal se deve ao facto de a teologia abraçada por Küng estar muito distante das preocupações do sul-americano Begoglio. "O estilo de teologia não corresponde ao do Papa Francisco, ou seja, o Papa Francisco reabilitou alguns teólogos latino-americanos, mas que vinham do âbito da teologia da libertação e portanto defendiam posições afins a essa teologia, e aí sim houve reabilitação específica, porque o Papa Francisco se identifica muito com essas correntes teológicas."

"No caso de Hans Küng são questões um pouco mais distantes do Papa Francisco, não que ele seja contra, propriamente, mas porque não tem nem simpatia nem antipatia e portanto por isso se houve algum tipo de encontro não foi tão noticiado."

Apesar da proibição de ensinar, Küng nunca foi impedido de exercer o sacerdócio e a vasta obra do teólogo mantém a sua importânca e relevância ainda hoje, sublinha João Duque. "A fase inicial de teólogo académico tem obras de fundo muito importantes, como a obra sobre a encarnação, que é uma obra importantíssima, mas claro que não é uma obra de leitura para o público não versado teologicamente. A obra Ser Cristão é talvez a obra mais equilibrada de uma fase intermédia dele e que eventualmente possa ser assimilável facilmente sem grande preparação teológica técnica."

"Entretanto, ele teve uma evolução diferente, com obras mais de divulgação, todas elas foram sendo traduzidas, 'Os grandes pensadores cristãos', por exemplo, e a ligação dele ao grande projeto da Universidade de Tübingen, o Ethos Mundial, a proposta que ele lançou de encontrar os mínimos denominadores comuns a todas as culturas e religiões, o contributo das religiões mundialmente para a construção de uma base de princípios éticos mundiais que permitissem à humanidade entender-se pacificamente, suficientemente. Não é uma fase especificamente teológica e talvez seja a fase pela qual ele é mais conhecido do público em geral", conclui o teólogo de Braga.

[Actualizado às 18h25]

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  • Antonio Fernandes Oliveira
    06 abr, 2021 Braga 16:23
    Por melhor que seja o teólogo nunca tem razão quando não está com o pensar do Papa, da Tradição e da Igreja. poderá dar a sua opinião mas acatará sempre o pensar e a comunhão da Igreja.

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