05 abr, 2021
O 45.º aniversário da Constituição da República Portuguesa coincidiu com uma acesa discussão sobre o seu valor efetivo enquanto lei suprema. O Presidente da República, garante da Constituição, salientou essa data, bem como a honra de ter participado na Assembleia Constituinte. O Presidente sublinhou o “facto de a Constituição ter sido e continuar a ser um marco histórico, consagrando o Estado de Direito e a Democracia Política, mas também a Democracia Económica e Social”.
Não foi unânime a votação final de Constituição, há 45 anos. O CDS votou contra, posição que sempre justificou ao longo de anos. O Prof. Jorge Miranda, em artigo no “Público” de sexta-feira passada, reconhece que o primeiro texto constitucional continha “formulações nalgum sentido próximas do marxismo”; e “mantinha, a título transitório, o Conselho da Revolução”. Foram necessárias sete revisões constitucionais, sempre respeitando as regras processuais que a Constituição continha, para a tornar compatível com a adesão à então CEE. Só em 1989 foi eliminada a irreversibilidade das nacionalizações, realizadas 14 anos antes, quando alguns tentavam tornar o país uma colónia soviética.
Agora, ao promulgar três leis aprovadas na Assembleia da República por todos os partidos, exceto o PS, Marcelo Rebelo de Sousa manifestou a sua genuína preocupação em apoiar os mais pobres e desprotegidos. Não terá sido este o único motivo para aquela promulgação, mas a sensibilidade social, em especial quanto à pobreza, é bem mais clara no presidente do que no primeiro-ministro, que é líder do partido socialista.
Só que, de acordo com quase todos os constitucionalistas, aquelas leis são inconstitucionais, pois violam a disposição constitucional conhecida por “lei travão”. A Constituição diz que, uma vez aprovado o Orçamento, a Assembleia da República não pode aceitar propostas que aumentem a despesa ou diminuam a receita previstas nesse Orçamento. Não é certamente agradável para um brilhante professor de Direito durante mais de quarenta anos assinar uma justificação que o levaria a chumbar um mero aluno seu que escrevesse tal coisa, como referiu José Miguel Júdice na SIC-Notícias.
“Lei é lei e a Constituição é a lei suprema”, argumentou o primeiro-ministro A. Costa, ao enviar para o Tribunal Constitucional os textos legislativos promulgados pelo Presidente da República. Mas a 27 de abril do ano passado afirmou A. Costa: “diga a Constituição o que disser, o confinamento é para manter”. O imperativo de respeitar a Constituição para o primeiro-ministro não é absoluto, afinal, como adiante se confirma.
Por outro lado, a Constituição proíbe a apresentação dessas propostas – não deveria o Presidente da Assembleia da República ter recusado levar a debate essas propostas, como tem acontecido noutros casos?
Costa parece entender que só ele, primeiro-ministro, tem o poder-dever de enviar para o Tribunal Constitucional decisões parlamentares feridas de alegadas inconstitucionalidades. Poderia não o fazer agora, como não o fez em junho do ano passado em circunstâncias semelhantes à atuais. Como lembrou António Lobo Xavier no programa da TVI 24 “Circulatura do quadrado”, nessa altura a oposição também se juntou para aumentar a despesa e o Governo optou por não pedir a fiscalização da constitucionalidade.
Nesse quadro, o Presidente da República tinha enviado uma carta ao primeiro-ministro perguntando-lhe se iria invocar a norma-travão constitucional que impede aumento de despesas e redução de receitas. António Costa respondeu dizendo que não, pois conseguia acomodar a despesa e “não queria abrir um conflito institucional com a Assembleia da República”. Lembrou Lobo Xavier que o Governo argumentou em junho que recorrer à lei-travão era uma prerrogativa que podia exercer ou não, consoante a sua conveniência e juízo, mas não tinha o dever de o fazer, ao contrário do que A. Costa agora alegou.
O Governo não desmente o precedente de junho passado, nem o poderia fazer. Mas, diz o primeiro-ministro, “não podemos deixar que um precedente se torne um hábito”. Nem quando as circunstâncias são bem mais dramáticas dos que as que envolveram o precedente do ano passado. Agora o alastramento da miséria e da fome é muito maior. E gastar na sobrevivência física e financeira das pessoas tem que ser uma prioridade real.
Claro que é compreensível a prudência do Governo em matéria de contas do Estado, como aqui tenho repetido. Com a dívida pública que tem, Portugal não pode arriscar-se a perder a confiança dos mercados com demasiados desequilíbrios orçamentais. Mas esse cuidado não deve levar ao ponto de a despesa executada ficar sistematicamente abaixo da orçamentada. Assim o Orçamento do Estado deixa de ter sentido.
No caso presente, segundo afirmações do Governo e do PS não estão em causa os milhões de euros de apoios adicionais, que podem ser acomodados, mas o princípio constitucional. Um princípio que, como se viu, não é obrigatório acatar, nem o deveria ser nas circunstâncias de miséria em que vivem tantos portugueses. Curiosa opção, para um partido dito socialista.